...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Bernard Noël ~ O Castelo da Ceia


(capa de 2ª edição)


(capa da 1ª edição)
seguido de O castelo de fora, O atentado às palavras, A pornografia
tradução de Laura Lourenço e Marc-Ange Graff
capa de João Bicker
ilustração de João Fonte Santa
Fenda 1997
[1000 ex]


A grande coisa continuou imóvel, e ia renunciar quando o meu olhar deu com a fechadura. Esta palpitava, era uma vulva entreaberta com um buraco tão irónico que de certeza morava nela um olho. Fascinado, aproximei o rosto. Os lábios estremeceram ao sentirem o meu bafo, o grelinho ergueu-se, o buraco orlou-se de espuma ou de lágrimas. Ia provavelmente lambê-lo mas contra a minha vontade, fiz um outro gesto, espontâneo: colei o olho ao buraco. Havia lá, bem no fundo, um cruzamento de corredores onde circulavam sombras; cada corredor ia dar a um lance de escadas brancas, que subiam para o vazio - o céu vazio e azul. Mais tarde, sempre que havia um corredor, levantava-se no céu um círculo prateado, que explodia em inúmeras figuras e no entanto se mantinha um círculo perfeito. Este espectáculo entusiasmava-me, ao ponto de me esquecer dos grandes lábios que se tinham colado agora à volta da minha órbita e começavam a fazer ventosa. Uma voz ressoou:
- Estão a roubar-te o olho
Ouvi as palavras com nitidez, mas estas eram tão alheias ao universo que contemplava, que não prestei atenção. Quando a sucção se tornou mais forte, tive menos consciência dela do que da metamorfose do meu olhar: tornava-se substancial, palpável, solidificava-se. Materialmente, unia o olho à sua visão e, tendo-se encorpado no buraco, era amado por este, cujos lábios me imobilizavam o rosto no seu limiar.
E nasceu o prazer, indizível, porque, sendo apenas o amor do amor, o seu instrumento duplo só dependia do poder criador da vidência, que faz do olho a matriz da realidade. O que o mundo me apresenta não está aqui. O que vejo emerge com dificuldade dos limbos do hábito. Só realizo verdadeiramente o que me vejo ver, e só isto existe.
Quem me amava? Conhecia o órgão sem conhecer o ser. Mas o ser não é individual e o amor paira no ar. A porta abriu-se; fui para o outro lado.

Raymond Roussel ~ Novas Impressões de África


tradução de Luiza Neto Jorge
introdução e apensos de Manuel João Gomes
direcção gráfica de João Bicker
Fenda 1988


A Coluna que, lambida até fazer sangrar a língua, cura a icterícia

Desgastar com a língua - heróico tratamento!
Pois só exangue estando a metem para dentro -
Como outros loucos mil, os flancos do pilar!
Mas como não correr, como se não vergar,
Fascinado pela esperança, evidente ou quimérica
('Sperança! alavanca-mor! todo o tio da América
((Esse jovem país, inda úbere e bendito,
- Virgem até tão tarde e dos atlas proscrito -
Onde oiro há aos milhões, mais que no velho mundo,
Quer porque - o apetitoso apela pelo imundo -
Aos cem mil quilos há quem fabrique um adubo
Par'esse campo infindo onde, focinho agudo,
(((Um cão doente fica hidrófobo num dia;
Ver se sempre esse líquido, que até a cria
Mais ensinada engole, sai do animalzinho
Do homem tão amigo, e lhe pule o focinho,
É acto, atentai bem, não menos necessário
Que: - quando o inimigo envia um emissário,
Nos olhos do intruso uma venda aplicar;
- Quando um rei passa, junto ao seu coche postar
Nos pontos cardiais um moto-ciclista;
- Quando, em conspiração, nomes o chefe alista,
Quanto na mente houver, tudo averbar em cifra;
- Para o passaro que pilha hesite e mais não esmifre,
A sementeira encher de espantalhos se faça;
- Velho ((((no nosso inverno a trunfa humana é escassa,
Tal o que semeado é ao sol estival
Se vai, quando ele no fim passa o sol invernal;)))),
Fugir de usar chapéu ou de se expor ao ar;
- Resguardar os tostões salvos do lupanar,
Ao fim de muito andar de cueca em cueca;
- Ir ao trinco e corrê-lo, à hora da soneca;
- Antes de em corda bamba exercitar-se, à mão
Um pênd'lo sempre ter;))), cem cães ajuda dão
...

Maria Regina Louro ~ Apocalipse


desenho da capa de Paulo Bernardo Vaz
Fenda 1982
colecção As Lágrimas de Eros 4
[500 ex]


As pernas marchavam no pó, em direcção ao suplício. Não era tempo de esperar.
Os lábios apertavam um silêncio de gesso. Não era o tempo de gritar.
O sexo asfixiava nas coxas, hirto. Não era o tempo de gerar.
Os olhos imobilizavam-se na planície deserta de sinais. Não era o tempo de contar as horas.
Os ombros sustentavam o ar espesso da caverna. Não era o tempo de erguer habitações.
Somente as mãos desenhavam na atmosfera uma dança luminosa e última.
Somente as mãos conheciam a rosa, e a amavam.

Rita Cerdeiros ~ As Hortênsias Brancas e as Bicicletas


capa de João Bicker
Fenda 1997
[1100 ex]

Recordo-me das tardes de domingo sem programa à vista, de como acordava sentindo atropelos na garganta e comichões nas costas, por vezes o suor escorria em bica, olhava para Matilde muito quieta e um sobressalto sacudia-me as vísceras, e então fazia planos, marcar um encontro, ir dar uma volta, receber visitas, fazer footing, tudo menos o silêncio que nos espreita, e o vazio que mata. E Matilde queria disfrutar-me em preguiça, e tomava-me a mão com graça, convidando-me a um tempo feito de coisas abstractas, e eu sabia que só a ideia me enchia de pânico, ficar ali fechado, horas sem conta, abandonado às coisas que passam, atirado para um espaço tempo que nada acalenta, sentindo em mim a explosão das coisas que se inquietam.