...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Pravda 3


direcção e organização de Júlio Henriques e Vasco Santos
colaborador neste número: João Damasceno
capa de Zepe
Fenda, 1985


Por obra e graça da Rainha Santa,
nossa padroeira e altíssima protectora,
foi este terceiro número de Pravda terminado
no santíssimo mês de Outubro, do ano de 1985,
em Coimbra, na Tipografia do Outro Mundo.
A capa foi manufacturada pela oficina Am/Produções
Serigráficas da Reboleira.
DEO GRATIAS.

[o colófone]

Fenda ~ Almanaque Topogáfico 4


Fenda, 2001
[2000 ex]


Vou agora contar-lhes como nasci, como cresci e como surgiram em mim as primeiras marcas do génio. Nasci duas vezes. Vejamos como isso aconteceu.
Meu pai casou com minha mãe em 1902. Os meus pais, no entanto, só me deitaram ao mundo em finais de 1905, porque o meu pai desejava que o filho dele nascesse exactamente no Ano Novo. Como tinha calculado que a concepção deveria ocorrer no dia 1 de Abril, só nesse dia abordou a minha mãe para lhe dizer que concebessem um filho.
O meu pai deu esses primeiros passos junto de minha mãe a 1 de Abril de 1903. Minha mãe, que há muito aguardava esse momento, ficou muitíssimo contente. Mas tudo indica que meu pai estava de humor brincalhão, porque não conseguiu conter-se e disse a minha mãe: «Hoje é Dia das Mentiras!».
Minha mãe ficou terrivelmente ofendida e nesse dia não voltou a deixar que ele se aproximasse dela. Foi preciso esperar pelo ano seguinte.
(...)

[excerto de «Como eu nasci» de Daniil Kharms]

Fenda ~ Almanaque Topográfico 3


Fenda, 2000
[2000 ex]


Sob o alto patrocínio do bacalhau escrevi este livro.
A partir de hoje, em homenagem à Amália Rodrigues, vou-me vestir de bacalhau.
É pena vocês não poderem apreciar, mas já comecei a pôr em prática este meu propósito. O colete, inteiramente em bacalhau, que hoje devia usar aqui, foi-me roubado esta manhã quando o dependurei à entrada duma retrete pública da Graça. Só ficaram no chão as presilhas em metal. Estas.
Paciência. Paciência também para o meu pai, que teve um trabalhão enorme para fazer um tão magnífico colete. Isto prova que há gente neste país que não perde o norte. Mas não pensem que as minhas teimosias e homenagens acabaram aqui.
Soube pela minha amiga e amante norueguesa Elisabeth Hessen que uns lapões de Kirkenes, senhores de três rebanhos de renas, são especialistas nesta matéria.
Onde eles vivem é muito para lá das ilhas Lofoten, no país dos fiordes, não muito longe da fronteira russa. Em pleno Ártico, com temperaturas inferiores a 42 graus e com invernos onde durante dois meses não se vê a mínima luz do dia. Onde os vizinhos, com o peso da neve e do silêncio, são potenciais assassinos ou nos ignoram totalmente. Mas nos sonhos mais íntimos, cheios de espinhos náufragos, eles por vezes tentam a emboscada. É pois em tais paragens que os Friedriksen vivem.
Já lhes encomendei um chapéu de bacalhau.
Já lhes pedi para me fazerem para o ano que vem uma camisa e um casaco de bacalhau.
Só espero a vossa compreensão para o ano que vem.
Se me toparem na rua todo vestido de bacalhau, não virem a cara como se não me conhecessem.
Não desatem a rir às gargalhadas.
Não me chamem doido ou extravagante.
Porque eu continuo a ser humano.
Embora me tenha des-pendurado.
Também peço aos mais pobres e aos mais impacientes que não me metam logo de molho.
Deixem-me respirar um bocadinho. Antes de me mergulharem em água fria.

[texto lido pelo autor, na apresentação do seu livro Adeusamália, na Livraria Ler Devagar, em Lisboa, Dezembro de 1999]

Fenda ~ Almanaque Topográfico 1


Fenda, 1999
[2000 ex]


A dividida música do pensamento

escreve o nó desdobrado
até ao infinito, atravessando
olhos nulos
em brasa,

o grito
fincado em cima
supende-se, com a duna
finalmente situada,
para ele se arremessa, no novo,
consulta-o, de uma vez
por todas, cercado
por um fervor que galga,

a queimadura
ébria
do sinal de Caim na neve do bosque
jorrando a meia-voz a martelar na neve,
de súbito alumiada, es-
quadrilhada pelos sinos insistentes,
atrás do sabugueiro
sonolenta adormece.

O outro caminho dividido
alimenta a fonte
vaporosa.


[poema de Paul Celan, dedicado a Henry Michaux, traduzido por JG Ostermeyer e Júlio Henriques]

Manuel Silva ~ O céu é o deserto


fotografia da capa de Jorge Ferreira
Fenda 1983
[250 ex]


a face inteira do universo está no espelho
donde a linha desce e a teia se desdobra e
seu puro centro é senti-lo. Senti-lo e voltar
a tecer a linha geométrica à volta da folha
e nela os olhos arderem de tanta luz. E
cegos recolher os inomináveis momentos na
gaveta lá deixarmos os olhos voltarmo-nos e
vermos as paredes do espelho paredes do mundo
acenar acenar

Artur Rockzane ~ Cavalos, Heróis e Lunáticos


capa de Todas Manas
Fenda, 1983
[600 ex]


Idiota

Está a falar-vos o idiota
que descobriu o segrêdo dos lemingos
e foi ler Tzara para os templos de Angkor

Já me cansei dos relatos,
formais,
dos vadios de Tânger
(a loucura não é uma instituição)

A minha febre agora estala
as paredes da cidade,
os heróis cansaram-se de o ser.
O medo
continua a tomar anfetaminas

(Um carro da polícia parou à porta do hotel)

Catrapum!
Fujam rapazes!
...................................- ou não!
É QUE SOMOS FORA-DA-LEI!
- assumimos um sexo azul e bizarro,
temos substâncias proíbidas nas cuecas
e um túnel cavado até ao delírio.
ASSUMIMOS A NOSSA ESQUIZOFRENIA
sem recorrer à caridade -
somos os terríveis ASSASSINOS DO REAL!

Os chuis começam a subir;
atiro a televisão pela janela,
dispo-me,
rasgo o ventre,
ESTOU LÚCIDO
- «eles»
..................não me podem prender!

Nú no telhado,
A Bárbara está-se nas tintas,
continua a ouvir Eddie Cochrane.
Para quê fugir rapazes?
Somos transparentes
de uma loucura sem rotina,
divinamente idiota,
o olhar húmido apostado na noite,
no perigo.

Não, já nada importa;
o poeta acordou o lagarto.
(uma mosca, japonesa
........passeia-se na janela)
e demência agita a briza
nas árvores, nos cabelos
Já nada importa.

Joëlle Ghazarian ~ Ó de Amoque


tradução de Júlio Henriques
capa de João Bicker sobre ilustração de Hans Bellmer
colecção fósforo 2
Fenda, 1995
[600 ex]


Como mudar de ritmo? Como chegar a isto: não se ser possuído pelo tédio, não mergulhar na sua vastidão? Amoque é virgem; nunca ninguém nela penetrou. Ó é um velho prostituto ainda bastante jovem para ser amante pago. Como o não pode ser com Amoque, a quem o sistema parece tentador mas excessivamente fácil («deitaremos mão a isso se não houver mais nada»), ele procura assim não se tornar homem travestido para mulher homossexual, para cuja pele se lhe afigura que ela o empurra; defende-se do transtorno que em si mora fazendo-o caricatura.
Fingir que não se finge, a fim de que os outros nos possam achar credíveis. Amoque e Ó, todavia, expõem-se a modelar os instrumentos da sua própria anulação; dois autores que se multipliquem em equívocos acabam por chegar ao esgotamento. Porém cientemente se esmeram com vista a livrarem-se , na ideia e no acto, das repetições escusadas, substituindo-as pelos sabores duma curiosidade motriz. Buscam em seu próprio engenho para conseguirem, não aquilo que teriam podido ser, mas o que estão já em condições de devir; prazer e bondade custam isso.

Miguel Martins ~ Cirrose


desenho gráfico de João Bicker
Fenda, 2003
[500 ex]


Haverá sempre uma loira ao dobrar da esquina. Sobretudo depois de perdidas todas as apostas. Conto ter razão. Não chegar a velho. Sempre contei. E não me tenho dado mal. A loira paga as favas e as contas. Andamos bem por uns tempos. Até me reerguer à altura da próxima aposta. Depois, regressa à esquina. Esse cruel limbo do amor. Que é o lugar dela desde que Deus lançou a semente do primeiro apostador. O primeiro que nunca considerou outra hipótese senão ser milionário ou morrer numa valeta. O tudo ou nada. E aprendeu a atropelar e ser atropelado. A descansar dentro dos pesadelos. Como num casulo. O casulo da consciência. Da realidade que nasce de passarmos demasiado tempo virados para dentro de nós. Como uma fera autofágica. Porque nos consumimos mais que a qualquer outro. A eles, à loira, por exemplo, horrorizamo-los à visão das nossas entranhas. A nós próprios consumimo-nos a carne a os miolos. E raramente acabamos por cima.

Roland Topor ~ A Cozinha Canibal


texto e desenhos de Roland Topor
tradução de Ernesto Sampaio
capa de Mario Feliciano/Secretonix
Fenda, 2000


Míope ao gratin

O míope assemelha-se ao presbíope, só que tem os olhos maiores e uma risca ao meio. É preciso tirar-lhe os óculos para que possa cair no gratin. Prepara-se como o badejo.

(...)

Agente de seguros em sua apólice

Extraiam as miudezas ao vosso agente e, se for necessário, façam-lhe um pequeno corte debaixo da cabeça para que não fique nada la dentro. Limpem-no bem, esfreguem-no suavemente a fim de lhe poupar a pele, lavem-no até estar apresentável. Em seguida, ponham-no a cozer a lume brando. Se o agente for gordo, são precisas quatro horas de cozedura; se não, três horas chegam.
Para servir, disponham uma apólice de seguros sobre uma travessa comprida, enfeitem com moedas, cartões de identidade, flores, e acompanhem o agente com um longo assobio de admiração, que não lhe aquece nem arrefece, mas que vos fará sentir bem.