...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Alface ~ Avó não pise o cocó


ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker|FBA
Fenda das raparigas, 10
Fenda, 2000
[2000 ex]


Enquanto isso, Nino estava fechado no seu quartito a escrever uma carta d'amor.
Não há mal (a sério que não) fecharmo-nos a sete chaves para depositar as nossas vidas numa folha de papel, embora se conheça quem prefira burilá-las em público para que o bafo da multidão aqueça as palavras esbracejantes.
Estava longe de ser a primeira carta d'amor que o rapazote encetava. Precocemente afectivo e dotado de temperamento ao qual nem repugna chamar ultra-romântico, o miúdo não consentia que os dias passassem sem lhe dar pró sentimento.
Mil folhas havia enchido só no último mês, em sua caligrafia aplicada mas incandescente, e as felizes destinatárias da prosa ruborizavam-se ainda o carteiro vinha a virar a esquina, na expectativa jamais defraudada do adjectivo galante, do substantivo certeiro, do bláblá profundo e hipnótico daquele enigmático correspondente.
A quem sairia o fedelho em tão ímpar quanto enciclopédico (digamos CD-Rómico) conhecimento da insondável natureza feminina?
Vá lá um mortal saber! E ademais, não sabemos nós já (Cf. Um Pai Porreiro...) que Nino saíra realmente filho de pais incógnitos, abandonado que fora neste nosso mundo-cano dentro de um recipiente sanitário a que vulgarmente chamamos caixote de lixo?

Alface ~ Filhos assim dão cabo de mim


ilustração de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker
col. fenda das raparigas, 7
Fenda, 1999
[2000 ex]



Os Branco tinham de antemão alugado as duas únicas suîtes, a Suîte Esmeralda e a Suîte Topázio. Por três meses. Pagando tudo adiantado. Uma fortuna, mas pronto.
Lá chegados, baixaram gelosias, desligaram telefones, faxes, TVs, CDs, computadores, slot-machines, os tanques de hidromassagem e colchões eléctricos, desenroscaram as lâmpadas, neutralizaram ares condicionados, aquecedores e arrefecedores, espetaram cá fora uns estanques letreiros DO NOT DISTURB e aferrolharam-se nas camitas.
Ansiando alguma paz, respeito, etc. Pode ser? Please?
Deixem que avise desde já:
até os melhores hoteis, com seus panoramas de mar quietinho, discretos, seus pinheiros convencidos e jacarandás, com campos de ténis insonorizados e campos de golfe domesticados, de lojas vorazes e salões racés e clientes atentos e abrigados, até os melhores pardeeiros hoteleiros têm pessoal.
Que ronca, toca, bate e arranha às portas, que deseja e pretende e quer entrar e limpar e servir.

Alface ~ Uma mãe porreira é prá vida inteira


ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker
Fenda das raparigas, 3
1ªed, Fenda, 1998
1ªed, Fenda, 1999
1ªed, Fenda , 2001
[1000 ex]


A vida corria-lhes sem nada de especial a assinalar, os gémeos governando a casa e o pai mudando pendularmente de emprego. É sabido que tinha grande dificuldade em aquecer qualquer lugar que aparecesse. Não por inadaptação, indolência ou arestas de carácter, mas por ser incapaz de controlar a respectiva estatura. Dando azo (argumentavam os patrões) à risota desenfreada dos colegas. E a produtividade ressentia-se, diziam-lhe (com uma palmadinha nas costas).
O problema só normalizou, mais ou menos, quando o sr. Branco encontrou aquele que viria a ser o seu filho mais novo, Nino. Por mero acaso, num caixote de lixo. O pimpolho ignorava como fora parar ao lixo e também se lhe tinham varrido da memória as noções mínimas de vocabulário. Talvez não fosse, tecnicamente, mudo. Mas lá que não dava uma para a caixa, isso é que não dava.
Só bastante mais tarde, quando Nino começou a mostrar as suas habilidades (transformar-se em todo e qualquer tipo de objecto esférico) é que os irmãos lhe deram o devido valor e ele se pôs a falar.
O pai, pelo contrário, engraçou com o gordinho desde que o viu e ficaram pela vida fora os melhores amigos do mundo. Partilhando, nomeadamente, palpitantes aventuras em busca do sustento para o agregado familiar.
Foi ainda por essa ocasião que deram em mudar de terra em terra, adoptando como programa de acção o lema "parar é morrer".