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Fernando Gandra ~ O sossego como problema ~ peregrinatio ad loca utopica


design de João Bicker
Fenda, 2008

A modernidade inventou o ruído? Não propriamente: universalizou-o.
Ele está nos telefones que tocam, nas ambulâncias que urgem, nas televisões que anunciam, nos alarmes que previnem, nos jornais que titulam. São os sinais por onde passa a "ideologia da comunicação". Todos existem porque ouvem, cada um impõe-se porque fala. A modernidade transformou o homem num lugar de trânsito de mensagens que nunca param. Daí que a força indicativa da palavra, que a energia vinculativa do discurso se tenha, por inflação, desacreditado.
Desapareceram as zonas de silêncio onde habitava a palavra de honra. Deixaram de se poder avaliar as consequências da palavra dada. Aí radica a constatação de David Le Breton: "a dissolução mediática do mundo conduz a um ruído ensurdecedor, à equivalência generalizada do banal e do horrível que anestesia os sentidos e endurece as sensibilidades". E assim se abriu uma hemorragia discursiva que começa na velocidade elocutória e logo acaba na sua fulminante vetustez. O sistema é ligeiro porque lhe falta o peso, severo e prudente, do silêncio.
Mas se a modernidade generalizou o ruído, foi também ela que politicamente impôs o silêncio por vezes em modalidades, digamos assim, inauditas. Sabemos hoje, sabemos penosamente hoje, que o silêncio pode ser a profecia do mal absoluto. De facto, todas as ditaduras começam por matar a palavra para depois se apropriarem do seu sinistro monopólio. É por isso que todos os movimentos de libertação se iniciaram pela reivindicação da sua universalidade pela ocupação imediata das estações de rádio e televisão procurando multiplicar as vozes agora festivas e caóticas. Ao silêncio hostil, ao silêncio de Estado, seguiu-se o ruído acolhedor, cheio de promessas messiânicas.