...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Pierre Mabille ~ O Maravilhoso


precedido de Liberdade Absoluta, de Luc de Heusch
tradução de Judite Berkemeier
ilustração da capa de Pedro Homem de Mello
Fenda 1990
[500 ex]

O homem é um momento no tempo, a sua vida é uma trajectória refulgente entre duas praias negras, o passado e o futuro; faísca viva semelhante ao fósforo que se acende na opaca escuridão; faísca que une duas noites, uma onde nasceu a paixão entre dois corpos, a outra, de silêncio, com a sua grande pausa musical: a Morte.
Mas, observando mais de perto, esta trajectória não é assim tão simples. Primeiro, no início, é o impulso progressivo, como o desabrochar do rebento, todas as potencialidades presentes, virtuais, desprendem-se umas atrás das outras num emaranhado de espirais: o coração que bate no embrião marinho, o sopro à nascença, os olhos que se abrem, as mãos e os pés que se fortalecem, o vigor que acorda, o ser completo.
O fim, também ele por ondas decrescentes, o fim que me faz sempre lembrar o encerramento metódico de uma sala de espectáculo: cala-se a orquestra das paixões, cobrem-se as calvas cabeças, cobrem-se as nuas gengivas, apaga-se a luz no cérebro enquanto abrandam os últimos ecos, a última sístole, como um interruptor que se descliga. Lá fora, a noite...
No cimo da curva, orgulhosamente virado para o horizonte da sua acção, em pleno meio-dia de sombras cruas, entre o prazer e a dor o homem, angustiado, observa a estrada. Do passado, esfumam-se as imagens, algumas silhuetas de renda dançam entre esqueletos de enforcados na praça dos milagres de séculos. No caminho do futuro, um espaço sem rosto cujos escassos vislumbres têm menos consistência que fogos fátuos ao emergir dos pegos e dos juncos para enganar o viajante.