...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Bernard Noël ~ O Castelo da Ceia


(capa de 2ª edição)


(capa da 1ª edição)
seguido de O castelo de fora, O atentado às palavras, A pornografia
tradução de Laura Lourenço e Marc-Ange Graff
capa de João Bicker
ilustração de João Fonte Santa
Fenda 1997
[1000 ex]


A grande coisa continuou imóvel, e ia renunciar quando o meu olhar deu com a fechadura. Esta palpitava, era uma vulva entreaberta com um buraco tão irónico que de certeza morava nela um olho. Fascinado, aproximei o rosto. Os lábios estremeceram ao sentirem o meu bafo, o grelinho ergueu-se, o buraco orlou-se de espuma ou de lágrimas. Ia provavelmente lambê-lo mas contra a minha vontade, fiz um outro gesto, espontâneo: colei o olho ao buraco. Havia lá, bem no fundo, um cruzamento de corredores onde circulavam sombras; cada corredor ia dar a um lance de escadas brancas, que subiam para o vazio - o céu vazio e azul. Mais tarde, sempre que havia um corredor, levantava-se no céu um círculo prateado, que explodia em inúmeras figuras e no entanto se mantinha um círculo perfeito. Este espectáculo entusiasmava-me, ao ponto de me esquecer dos grandes lábios que se tinham colado agora à volta da minha órbita e começavam a fazer ventosa. Uma voz ressoou:
- Estão a roubar-te o olho
Ouvi as palavras com nitidez, mas estas eram tão alheias ao universo que contemplava, que não prestei atenção. Quando a sucção se tornou mais forte, tive menos consciência dela do que da metamorfose do meu olhar: tornava-se substancial, palpável, solidificava-se. Materialmente, unia o olho à sua visão e, tendo-se encorpado no buraco, era amado por este, cujos lábios me imobilizavam o rosto no seu limiar.
E nasceu o prazer, indizível, porque, sendo apenas o amor do amor, o seu instrumento duplo só dependia do poder criador da vidência, que faz do olho a matriz da realidade. O que o mundo me apresenta não está aqui. O que vejo emerge com dificuldade dos limbos do hábito. Só realizo verdadeiramente o que me vejo ver, e só isto existe.
Quem me amava? Conhecia o órgão sem conhecer o ser. Mas o ser não é individual e o amor paira no ar. A porta abriu-se; fui para o outro lado.

Raymond Roussel ~ Novas Impressões de África


tradução de Luiza Neto Jorge
introdução e apensos de Manuel João Gomes
direcção gráfica de João Bicker
Fenda 1988


A Coluna que, lambida até fazer sangrar a língua, cura a icterícia

Desgastar com a língua - heróico tratamento!
Pois só exangue estando a metem para dentro -
Como outros loucos mil, os flancos do pilar!
Mas como não correr, como se não vergar,
Fascinado pela esperança, evidente ou quimérica
('Sperança! alavanca-mor! todo o tio da América
((Esse jovem país, inda úbere e bendito,
- Virgem até tão tarde e dos atlas proscrito -
Onde oiro há aos milhões, mais que no velho mundo,
Quer porque - o apetitoso apela pelo imundo -
Aos cem mil quilos há quem fabrique um adubo
Par'esse campo infindo onde, focinho agudo,
(((Um cão doente fica hidrófobo num dia;
Ver se sempre esse líquido, que até a cria
Mais ensinada engole, sai do animalzinho
Do homem tão amigo, e lhe pule o focinho,
É acto, atentai bem, não menos necessário
Que: - quando o inimigo envia um emissário,
Nos olhos do intruso uma venda aplicar;
- Quando um rei passa, junto ao seu coche postar
Nos pontos cardiais um moto-ciclista;
- Quando, em conspiração, nomes o chefe alista,
Quanto na mente houver, tudo averbar em cifra;
- Para o passaro que pilha hesite e mais não esmifre,
A sementeira encher de espantalhos se faça;
- Velho ((((no nosso inverno a trunfa humana é escassa,
Tal o que semeado é ao sol estival
Se vai, quando ele no fim passa o sol invernal;)))),
Fugir de usar chapéu ou de se expor ao ar;
- Resguardar os tostões salvos do lupanar,
Ao fim de muito andar de cueca em cueca;
- Ir ao trinco e corrê-lo, à hora da soneca;
- Antes de em corda bamba exercitar-se, à mão
Um pênd'lo sempre ter;))), cem cães ajuda dão
...

Maria Regina Louro ~ Apocalipse


desenho da capa de Paulo Bernardo Vaz
Fenda 1982
colecção As Lágrimas de Eros 4
[500 ex]


As pernas marchavam no pó, em direcção ao suplício. Não era tempo de esperar.
Os lábios apertavam um silêncio de gesso. Não era o tempo de gritar.
O sexo asfixiava nas coxas, hirto. Não era o tempo de gerar.
Os olhos imobilizavam-se na planície deserta de sinais. Não era o tempo de contar as horas.
Os ombros sustentavam o ar espesso da caverna. Não era o tempo de erguer habitações.
Somente as mãos desenhavam na atmosfera uma dança luminosa e última.
Somente as mãos conheciam a rosa, e a amavam.

Rita Cerdeiros ~ As Hortênsias Brancas e as Bicicletas


capa de João Bicker
Fenda 1997
[1100 ex]

Recordo-me das tardes de domingo sem programa à vista, de como acordava sentindo atropelos na garganta e comichões nas costas, por vezes o suor escorria em bica, olhava para Matilde muito quieta e um sobressalto sacudia-me as vísceras, e então fazia planos, marcar um encontro, ir dar uma volta, receber visitas, fazer footing, tudo menos o silêncio que nos espreita, e o vazio que mata. E Matilde queria disfrutar-me em preguiça, e tomava-me a mão com graça, convidando-me a um tempo feito de coisas abstractas, e eu sabia que só a ideia me enchia de pânico, ficar ali fechado, horas sem conta, abandonado às coisas que passam, atirado para um espaço tempo que nada acalenta, sentindo em mim a explosão das coisas que se inquietam.

Pierre Mabille ~ O Maravilhoso


precedido de Liberdade Absoluta, de Luc de Heusch
tradução de Judite Berkemeier
ilustração da capa de Pedro Homem de Mello
Fenda 1990
[500 ex]

O homem é um momento no tempo, a sua vida é uma trajectória refulgente entre duas praias negras, o passado e o futuro; faísca viva semelhante ao fósforo que se acende na opaca escuridão; faísca que une duas noites, uma onde nasceu a paixão entre dois corpos, a outra, de silêncio, com a sua grande pausa musical: a Morte.
Mas, observando mais de perto, esta trajectória não é assim tão simples. Primeiro, no início, é o impulso progressivo, como o desabrochar do rebento, todas as potencialidades presentes, virtuais, desprendem-se umas atrás das outras num emaranhado de espirais: o coração que bate no embrião marinho, o sopro à nascença, os olhos que se abrem, as mãos e os pés que se fortalecem, o vigor que acorda, o ser completo.
O fim, também ele por ondas decrescentes, o fim que me faz sempre lembrar o encerramento metódico de uma sala de espectáculo: cala-se a orquestra das paixões, cobrem-se as calvas cabeças, cobrem-se as nuas gengivas, apaga-se a luz no cérebro enquanto abrandam os últimos ecos, a última sístole, como um interruptor que se descliga. Lá fora, a noite...
No cimo da curva, orgulhosamente virado para o horizonte da sua acção, em pleno meio-dia de sombras cruas, entre o prazer e a dor o homem, angustiado, observa a estrada. Do passado, esfumam-se as imagens, algumas silhuetas de renda dançam entre esqueletos de enforcados na praça dos milagres de séculos. No caminho do futuro, um espaço sem rosto cujos escassos vislumbres têm menos consistência que fogos fátuos ao emergir dos pegos e dos juncos para enganar o viajante.

Benjamin Péret ~ O Quilombo de Palmares


revisão de Júlio Henriques
prefácio de Ruy Coelho
direcção gráfica de João Bicker
Fenda 1988


Os primeiros negros instalados nos Palmares devem ter lavrado a terra em comum. A necessidade de fazer face a um afluxo constante de fugitivos obrigava esses primeiros cultivadores a colectivizar os recursos do mocambo. Os brancos não cessaram, durante cinquenta anos pelo menos, de destruir as colheitas dos negros, a fim de os reduzir pela fome e de abater a sua combatividade. Porém, essas incursões repetidas não podiam ter outra consequência senão aumentar a solidadiedade interna de cada mocambo e de toda a população dos Palmares. Imaginemos, com efeito, que as culturas de um mocambo tenham sido devastadas. Como admitir por um instante que o quilombo vai abandonar os habitantes do povoado sacrificado? Seria enfraquecer duplamente o conjunto dos Palmares: em primeiro lugar porque a aldeia abandonada à sua sorte se tornaria incapaz de sustentar um novo assalto dos brancos. Antes de ser reduzido a tal extremo, esse mocambo tentaria aliás uma expedição contra os brancos, cujo resultado - fora as vantagens que os assaltantes dela pudessem tirar - seriam novas represálias dos brancos, que não atingiriam forçosamente o mocambo assaltante. E não é só. Essa ausência de solidariedade revelaria uma falta de previdência, pois a desgraça que atingiria essa aldeia poderia atingir outra no dia seguinte. Os brancos não teriam mais do que atacar cada povoado isoladamente para vencer com segurança e em pouco tempo. Ora, sabemos que foram precisos cinquenta anos para destruir os Palmares.

Antero de Quental ~ A Poesia na Actualidade


prefácio de Júlio Henriques
capa de João Bicker
Fenda 1988

Filha da pura intuição, por um processo espontaneo e verdadeiramente instinctivo, a producção das linguas e dos mithos cessa no momento em que a primeira reflexão acorda no espirito humano, e é justamente nesse momento que a poesia apparece. Ella representa o periodo de transição entre a pura espontaneidade e a reflexão pura, entre o dominio absoluto da synthese e o dominio absoluto da analyse.
A especulação metaphisica, a theologia e a poesia caracterisam essa phase intermedia do desenvolvimento psycologico e racional da Humanidade.
Em todos tres a materia é já um producto do pensamento reflectido, da analyse mais ou menos consciente, senão intencional e systematica: em todas tres tambem é a synthese que dá a forma, é a intuição immediata que liga entre si e reduz a uma unidade concreta, por uma força plastica e como que organica, aqueles elementos de origem diversa.

Alberto Pimenta ~ Obra Quase Incompleta


capa João Bicker
fotografias de Fernando Aguiar, Paulo Aguiar
Kurt Paulus, Arianna Giorgi, Gabriele Brustoloni
Victor A. Moreno, Garcia Poveda
Fenda 1990
[1000 ex]


ligação

a palavra repousa de olhos semicerrados
encoberta por um véu deixando entrever
uma mama: o poeta aproxima-se tenta ma
mar. a palavra estremece abre os olhos.
o poeta afasta-se de um golpe tropeça
cai sentado. a palavra percorre-se com
as mãos a ver se está intacta. fica
pensativa os dedos enfiados nas tranças
brincando. o poeta aproxima-se então por
trás. agarra a palavra pela cinta. ela
tenta furtar-se ao contacto. caem. rolam
por terra. a palavra continua a debater
se. o poeta mete um dedo na vulva da
palavra. a palavra torce-se toda. depois
acalma. o poeta mete outro e outro de
do ainda, retira um hífen todo molha
do. a palavra cai ofegante. o poeta a
fasta-se com um sorriso mete o hífen a
o bolso e publica-o com uma palavra
sua na capa


carta a uma iniciante

daqui
donde estou
só posso dizer-te: aprende
as melhores maneiras.
passa as mãos por ti, mete os dedos
em todas as tuas entradas e saídas,
só assim as aprenderás
as melhores maneiras,
ou julgas que
facilmente encontrarás
quem tas ensine?

repara
como todos
te querem ensinar
as boas maneiras
mas já alguém te
falou das melhores?
já alguém
te deu a conhecer
e a cheirar
os caminhos da tua glória?

cuida-os,
dá-lhes toda a atenção enquanto
é tempo,
não te afastes nem te prives
do que és tu, do que tu és,
aproveita
bem o tempo antes que
comece o passado
a parecer-te
mais longo que o possível futuro
e tu
comeces
a cheirar daquele modo
que agrada e sobretudo atrai
a deus, o amador de cadáveres.

Bernard Noël ~ Extractos do Corpo


tradução de Laura Lourenço e Marc-Ange Graff
capa de João Bicker
Fenda 1997


No princípio, o olho visitou a medula, e eu nasci. Um sexo emergiu no oposto do olho para ver o tempo, e, devagar, a medula fiou um novelo de nervos à volta do qual escorreram as horas. E houve o ventre. Então a água teve sede de se pegar, e condensou a pele. O mole gerou o seu contrário, e apareceu o osso. Houve um dentro e houve um fora, mas o dentro continha o seu próprio fora que dizia mim enquanto o outro dizia eu. O olho pô-los às escuras e virou-se para o fora-fora. Eu tive um rosto, um volume, um corpo. Fui um cheio, que ia sempre para frente. Mas o meu olho inverteu-se. Agora, vejo para trás, agora sou oco, e o meu corpo terá de ser recriado.

(...)

Da barriga à garganta, esticou-se o espaço. A pele cresceu. Atado a mim mesmo, sugo o meu interior, esvazio-me em mim. Mais tarde, o osso vertebral mineraliza as articulações todas. O olhar gela. O sangue porém voltará a subir pelas represas arteriais, e fará crescer na pele o fungo cor-de-rosa dum sorriso. Ser eu continua a ser parte da essência do eu.

Ángel González ~ Tratado de Urbanismo


tradução de Helder Moura Pereira
capa de João Bicker/FBA
Fenda 2001


Canção de Inverno e de Verão

Quando é inverno no Mar do Norte
é verão em Valparaíso.
Os barcos fazem soar as suas sirenes ao entrar no
porto de Bremen com bandeiras de névoa e de
gelo nos seus cabos,
enquanto as balandras batidas pelo sol arrastam pela
superfície do Pacífico Sul belas banhistas.
Isso sucede ao mesmo tempo,
mas jamais no mesmo dia.
Porque quando é dia no Mar do Norte
- brumas e sombras absorvendo restos
de uma suja luz -
é noite em Valparaíso
- rutilantes estrelas lançando afiados dardos
às ondas adormecidas.

Como duvidar de que nos quisemos,
que me perseguia o teu pensamento
e a tua voz me procurava - por trás,
muito perto, ia a minha boca.
Quisemo-nos, é certo, e eu não sei quanto:
primaveras, verões, sóis, luas.

Contudo jamais no mesmo dia.

Juan Luis Panero ~ Antes que chegue a Noite (antologia)


versões de António Cabrita e Teresa Noronha
prefácio de António Cabrita
capa de João Bicker/FBA
Fenda 2001


Na manhã seguinte Cesare Pavese não pediu o pequeno almoço

Logo que desceu do comboio,
só, atravessou a cidade deserta,
entrou sozinho no desocupado hotel,
franqueou a porta do quarto individual,
e escutou com assombro o silêncio.
Dizem que levantou o auscultador
para chamar alguém
mas é falso, completamente falso.
Como se houvesse alguém a quem chamar -
ninguém vivia na cidade, ninguém no mundo.
Ingeriu a água, as pequenas drageias,
e esperou a chegada do sono.
Com um certo receio pela sua saúde -
tinha pela primeira vez firmado a sua existência -,
talvez curioso, com amolecidos gestos,
sentiu chegar o peso das pálpebras.
Horas depois - um enigmático sorriso
desenhava-lhe os lábios -
a si mesmo anunciou, convictamente,
a única certeza que no fim tinha adquirido:
jamais voltaria a dormir só um quarto de hotel.

Joelle Ghazarian ~ Sakarina


desenho de Rémi Baudier
maquete de Júlio Henriques
colecção A parte Maldita 2
(texto em francês)
Fenda 1983


Installer la vie dans un petit fauteuil, un petit soleil de miroirs, une encyclopédie sans failles. Ordonner la préparation d'une conjoncture, d'une miniscule musique, d'un épisode crépitant. Le feu vert au décor: la paille ne fait que fumer et des volutes d'ombre nous épaississent, nous saississent dans notre séparation sans nous rendre à notre dualisme. L'éphémère est un sport qui fait mal. La moto aussi. Le triomphe s'arc-boute sur ses moignons, il s'épuise dans le contre-plaqué. Il est défiguré, et pourtant il est bestialement toujours présent, à faire croire qu'il a oublié le souvenir des médailles et vit maintenant dans les mots. Pas de mémoire d'outre-tombe. Pas de refrain d'outre-pays. Somnolence acquise, il n'y a aucun pas à franchir. Les lèvres s'epuisent à la prostituition et le voile ne se gonfle pas de sueur. Un ventre à franchir. Une sépulture à fleurir. Petits mots tombés, ne devraient pas s'acclimatiser, ne devraient avoir aucun lien avec le métro, les usines, les us et les costumes, quoique résultant de ce que ces murs ont créé. Le fond est magnétisé par le mur, cette forme. Le fond est anéanti, equivoque, estompé.

revisão da matéria dada [1]




Luís Sousa Ribeiro ~ Antigos e novos ensaios de gnosiologia predatória


capa de João Bicker
colecção O vermelho e o negro 4
Fenda 1994
[1000 ex]

Dentro de mim existe um espaço; não só entre mim e mim mas também no interior de cada mim.
Nele movem-se pessoas; não se movem apenas, pois cada uma tem o seu trabalho, família e interesses. Há-as bastantes quase como pessoas, mas muitíssimas mais existem como esboços de pessoas; quero dizer como retratos apressados ou como minuciosos estudos anatómicos.
O que é curioso neste lugar é que não só as pessoas-quase-pessoas e os esboços-de-pessoas são dotados de raciocínio, desejo e intenção como ainda o são quaisquer elementos dos seus corpos - ouvido, pé, olho, etc. - uma vez isolados.
Devo mesmo acrescentar, vencendo a minha estupefação, de que as mesmas características humanas residem e se manifestam em qualquer outro dos objectos deste espaço - copos, cadeiras, casas, etc. - de que estas gentes se sirvam no seu dia-a-dia.

Blaise Pascal ~ Discurso sobre as paixões do amor


tradução de Miguel Serras Pereira
posfácio de José Manuel Heleno
design de João Bicker
Fenda, 2006

O homem nasceu para o prazer: sente-o, não há necessidade de outra prova. Segue pois a sua razão ao dar-se ao prazer. Mas muito amiúde sente a paixão no seu coração sem saber por onde terá ela começado.
Um prazer verdadeiro ou falso pode preencher de igual maneira o espírito; pois que importa que esse prazer seja falso, contando que estejamos persuadidos de que é verdadeiro?
(...)
Em amor um silêncio vale mais do que uma linguagem. É bom ficarmos interditos; há uma eloquência de silêncio que penetra mais do que saberia fazê-lo uma língua.
(...)
Tiraram a despropósito o nome da razão ao amor, e opuseram-nos sem bom fundamento, porque o amor e a razão não são mais do que uma e a mesma coisa. É uma precipitação de pensamentos que se inclina para um lado sem bem examinar todas as coisas, mas é sempre uma razão, e não devemos nem podemos desejar que seja de outro modo, porque seríamos então máquinas muito desagradáveis. Não excluamos pois a razão do amor, uma vez que ela é dele inseparável.

Fernando Gandra ~ O sossego como problema ~ peregrinatio ad loca utopica


design de João Bicker
Fenda, 2008

A modernidade inventou o ruído? Não propriamente: universalizou-o.
Ele está nos telefones que tocam, nas ambulâncias que urgem, nas televisões que anunciam, nos alarmes que previnem, nos jornais que titulam. São os sinais por onde passa a "ideologia da comunicação". Todos existem porque ouvem, cada um impõe-se porque fala. A modernidade transformou o homem num lugar de trânsito de mensagens que nunca param. Daí que a força indicativa da palavra, que a energia vinculativa do discurso se tenha, por inflação, desacreditado.
Desapareceram as zonas de silêncio onde habitava a palavra de honra. Deixaram de se poder avaliar as consequências da palavra dada. Aí radica a constatação de David Le Breton: "a dissolução mediática do mundo conduz a um ruído ensurdecedor, à equivalência generalizada do banal e do horrível que anestesia os sentidos e endurece as sensibilidades". E assim se abriu uma hemorragia discursiva que começa na velocidade elocutória e logo acaba na sua fulminante vetustez. O sistema é ligeiro porque lhe falta o peso, severo e prudente, do silêncio.
Mas se a modernidade generalizou o ruído, foi também ela que politicamente impôs o silêncio por vezes em modalidades, digamos assim, inauditas. Sabemos hoje, sabemos penosamente hoje, que o silêncio pode ser a profecia do mal absoluto. De facto, todas as ditaduras começam por matar a palavra para depois se apropriarem do seu sinistro monopólio. É por isso que todos os movimentos de libertação se iniciaram pela reivindicação da sua universalidade pela ocupação imediata das estações de rádio e televisão procurando multiplicar as vozes agora festivas e caóticas. Ao silêncio hostil, ao silêncio de Estado, seguiu-se o ruído acolhedor, cheio de promessas messiânicas.

Carlos Mota de Oliveira ~ Livro das coisas santas


capa de João Bicker
Fenda, 1995
[600 ex]


MARTINHO IV (1281-1285)
«Excomungou vários
adversários políticos»

Logo no início da sua carreira religiosa, disse a um frade:«Suma-se da minha cela, senão rebento-lhe as ventas!» mais tarde, nomeado guarda dos selos reais, ameaçou S. Luís: «Suma-se do meu gabinete, senão faço desaparecer os sinetes e as chancelas!» E ainda legado do Papa Gregório X, ministrou um arraial de bordoada a um indefeso ministro de França!
Já eleito Papa, corria o ano de mil duzentos e oitenta e um, aconselhou o Rei de Aragão: «Suma-se depressa dos meus olhos, senão deponho-o!» E outras vicissitudes se seguiram. Só nunca ninguém entendeu a afeição que sentia por Carlos de Valois. Se um corava, o outro suspirava. E se o outro segredava, logo ele escutava!
Sabiam que a alma de cada um vivia no peito do outro, dizia-se em Perusa, no ano em que o primeiro faleceu.

Carlos Mota de Oliveira ~ Nove poemas de casa e três do mundo


design de João Bicker
Fenda, 1998
[600 ex]


O frio

O frio
na Igrejinha
quer lá saber!

E ameaça:
Não há
casa

onde
não entre!

Eu nada
digo

e adormeço
com nove

medronhos
e a pistola
na mão.

Marc-Ange Graff ~ menos 273 poemas


revisão técnica de Laura Lourenço
capa de João Bicker
Fenda, 1996
[600 ex]


Vigiador, ele inventa ardis, deficiências. Pretende cifradas vias indiferentes, que povoa com calvários e amoras. Arranja reclusões pacíficas, um cosmo resignado, uma chuva vulgar.

A gávea e a floresta por fim tornaram-se-lhe frias, sombrias e virgens, não tem recurso a sua dureza. Mas está lá um reinado, a autoridade dum ceptro, uma vida silenciosa e grave, signos, fermentos.

Entesa-se ali, no encoberto dum céu pressentido, o arco ilusório do gelo e da seiva, a ventura nunca advinda.

Escolherá o ir, a sua dúvida, insígnias depostas.

Marc-Ange Graff ~ Trois mantiques / Três vaticínios


tradução de Laura Lourenço, revista pelo autor
colecção A Parte Maldita, 1
Fenda, 1983
[250 ex]


BAGAGENS

Os mistérios que se dá a pastar

(esta árvore
é pinga à beira do copo
quereria
que secasse ignorada

os passos
são tambor de risos
quero-os
perfurados por longos corvos-marinhos)

os mistérios que ele fluíu
do fundo de chagas perenes
seus cavalos murmurados pelas ervas

e outros tantos
adormecidos à sombra no seu solar
seu covil de genebra

***

Nunca mais terá ele vergonha
das epilepsias e portulanos seus
em marcas circulares
no cais encerado da mesa.

Edmondo de Amicis ~ O vinho


tradução de Rita Benamor Murteira
ilustrações de A. Ferraguti, E. Ximenes, E. Nardi
capa de João Bicker
Fenda 1995

Há outros a quem o vinho excita especialmente as faculdades intelectuais. Este efeito habitual atinge nestes homens um grau extraordinário. Não se trata apenas de uma exaltação, mas antes de uma verdadeira transformação. Pessoas incultas, de inteligência medíocre e linguagem rudimentar, privados de qualquer qualidade atraente, revelam de repente uma sabedoria que não lhes conhecíamos, começam a falar à vontade uma língua que antes se limitavam a balbuciar, participam em discussões onde nunca tinham ousado abrir a boca, e confundem os adversários superiores com inesperadas réplicas geniais. Entusiasmam-se com o seu triunfo acrescentando, assim, embriaguês à embriaguês.

Ezra Pound ~ Camões


(capa da 2ª edição)
posfácio de Stephen Wilson
tradução de Isabel Pedro dos Santos
design de João Bicker
1ª ed, Fenda 1980
2ª ed, Fenda 2005

Camões escreve num estilo resplandescente e bombástico - que por vezes é poesia. A língua portuguesa, pouco musical, é subjugada, e os seus acordes dissonantes harmonizados. Como retórica colorida, Os Lusíadas dificilmente será ultrapassado, em minha opinião. O encanto deve-se ao vigor do autor, à sua unanimidade, à firme convicção da glória das coisas do mundo exterior - e há igualmente um certo prazer no contacto com o tipo de espírito de Camões, o espírito de um homem com suficiente entusiasmo para escrever um poema épico em dez Cantos sem nunca se deter em qualquer tipo de reflexão filosófica. Ele é o Rubens da poesia.

Lysander Spooner ~ Insultos a chefes de estado


tradução de Miguel Serras Pereira
desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda Luminosa 5
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 ex]

Segundo os princípios gerais do direito e da razão, as dívidas contraídas em nome dos «Estados-Unidos» ou do «povo dos Estados-Unidos» não tem a menor validade. É totalmente absurdo pretender que dívidas de um montante de dois mil e quinhentos milhões de dólares pesam sobre trinta e cinco ou quarenta milhões de homens quando não há a sombra de uma prova legítima - como a que seria exigida para autenticar uma dívida privada - que possa ser exibida diante de alguns deles para mostrar que esse homem, ou o seu representante devidamente autorizado, tenha alguma vez subscrito um contrato que o obrigue a pagar um cêntimo que seja.
É certo que nem o povo dos Estados-Unidos no seu conjunto nem qualquer parte deste povo alguma vez subscreveu separada ou individualmente um contrato que o obrigue a pagar um cêntimo que seja dessas dívidas.
É igualmente certo que nem o povo dos Estados-Unidos no seu conjunto nem qualquer parte desse povo se constituiu alguma vez, por meio de um contrato manifesto, escrito ou de outra forma autenticado e voluntário, numa firma, pessoal moral ou associação chamada «os Estados-Unidos» ou «o povo dos Estados-Unidos», autorizando os agentes dessa associação a contrair dívidas em seu nome.

Lysander Spooner ~ Os vícios não são crime


tradução de Miguel Serras Pereira
desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda Luminosa 6
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 ex]

Um governo que punisse todos os vícios de maneira imparcial é segundo toda a evidência de tal maneira impossível que nunca se viu, nem verá, uma pessoa tão estúpida que o propusesse. O máximo que se pode propor é que o governo puna um vício ao acaso, ou quando muito alguns, ou aqueles que considera mais repugnantes. Mas trata-se de uma discriminação totalmente absurda, ilógica e tirânica. Que direito pode ter seja que grupo de homens for a dizer: "nós puniremos os vícios dos outros homens; mas ninguém punirá os nossos próprios vícios. Nós limitaremos os outros homens na aquisição de qualquer conhecimento experimental conducente, ou necessário, à sua própria felicidade; mas a nós, ninguém nos limitará na nossa aquisição de um conhecimento experimental conducente, ou necessário, à nossa própria felicidade"?
Só os ingénuos e os imbecis podem ter a ideia de proceder a suposições semelhantes. E, no entanto, segundo toda a evidência, só suposições semelhantes podem permitir a quem quer que seja reclamar o direito de punir os vícios de outrem e proclamar, ao mesmo tempo, a impunidade dos seus próprios vícios.

Manuel da Silva Ramos ~ Jesus - The last adventure of Franz Kafka


design gráfico de João Bicker / FBA
composição de Milton Siquenique
Fenda, 2002
[? ex]
.
.

Agora Kafka passeava-se de trela com o Vagabundo, que de pé ou a quatro patas usava açaimo de arame na boca relutante.
Tinha sido um escândalo terrível a primeira vez que aparecera com ele nesse estado.
Para que a festa fosse verdadeiramente grande tinha sido o Caminho Real que ele utilizara - assim a coroação seria o cúmulo do regozijo, o apogeu da cumplicidade.
Kafka nunca vira tanto rancor estampado na cara das pessoas. Tanto desejo de rir a bandeiras despregadas - continham-se os brutos.
Começou pois a peregrinação iniciática - à procura da verdadeira identidade dele e dos outros. Saíram das escadas do Museu Nacional e começaram a descer a praça Venceslau.
Diante duma árvore estava um soldado a ler um jornal e logo que os viu entrou em pânico.
Pôs-se a amachucar o jornal - até ele formar uma bola inchada.
Depois deitou-a para o chão e começou a pisá-la furiosamente. Kafka que normalmente era calmo e sossegado, mais doce que um carneirinho, começou a encher-se de nervos.
Quanto ao outro representava o seu papel duma maneira fixativa: era um cão ponderado.
Mais abaixo viu-os Jakobson do último andar do Grande Hotel Europa onde assomara a uma janela para fumar um cigarro americano.

Manuel da Silva Ramos ~ adeusamália


desenho gráfico de João Bicker
Fenda Luminosa 18
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda, 1999
[1100 ex]
.
.
Lembro-me da Amália a cantar «Lisboa, não sejas francesa».

Lembro-me do campeão de xadrez Joaquim Durão.

Lembro-me do Omo, lava mais branco.

Lembro-me do «Cavaleiro Andante».

Lembro-me da caneta Parker 61.

Lembro-me do Sonasol, o sabão da lavadeira.

Lembro-me da Amália a cantar no «ABC» em Paris.

Lembro-me das máquinas para coser Singer.

Lembro-me das pastilhas Rennie.

Lembro-me do duplo caldo de galinha Star.

Ana de Sá ~ Da vida dos papas


capa de João Bicker
3ªed, Fenda, 1990
[500 ex]
2ªed, Fenda, 1982
1ªed, Lua Vaga, 1980
.
.
Se a corte de uma ovelha necessita de, pelo menos, dois metros quadrados, três o cortelho de um porco, quase quatro o quarto de dormir de um cavalo, qual o tamanho que deverá ter o futuro barretinho branco dos bispos?
Se um cão vive nove anos, uma égua três cães, um homem três cavalos, quanto tempo durará o futuro barretinho dos bispos?
Se o canário tem catorze dias de gestação, as galinhas vinte e um, quarenta os papagaios, cento e oito um leão, quanto tempo levará a fazer o futuro barretinho redondo dos bispos?
A este barretinho, redondo e liso, será dado o nome de solidéu.
De Bispo que não fale latim ou solidéu que esteja roto, Libera nos Domine...

Jorge Sousa Braga ~ Fogo sobre fogo


desenho gráfico de Mário Feliciano
sobre pormenor de fotografia de João Francisco Vilhena
Fenda, 1998
[1100 ex]


A borboleta que poisou
no teu mamilo perdeu
vontade de voar


*


Basta-me
o teu umbigo de vinho
para ficar bêbado


*


Verde amarelo vermelho...
Para quando um semáforo
com as cores todas do arco-íris?



.

Jorge Sousa Braga ~ A greve dos controladores de voo



capa de João Bicker

Fenda 1984

[500 ex]


Um indivíduo de pele verde e olhos doirados penhorou o anel de Saturno, numa ourivesaria de Baixa, tendo-o reavido dois meses depois. Os seus olhos não tinham mudado de cor, confirma o gerente.


(...)


Passara quarenta anos de binóculos assestados, a seguir as migrações das aves e a tomar estranhos apontamentos num caderno. A última vez que foi visto voava a meia altura em direcção ao sul.


(...)


De todos os complexos turísticos da Europa são as estâncias balneares do Mar Negro, as preferidas pelos morcegos em gozo de férias.

bíblia divulga palavra do senhor




Bíblia, Ano zero Número zero, abril 1996
.





Bíblia nº3, Maio 1997
.




Bíblia nº 1, Outubro 1996

João Tenório Maia ~ Atum


desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda 1998
[750 exemplares]
.
Do cimo do pódio duma aula
Das belas arte, de modelo nu,
Ostentavas o teu formoso cu,
Como uma pantera dentro da jaula.
.
E olhavas-me meiga e feroz
Lá do teu olímpico porte altivo.
E tinhas na cona o fogo vivo
A rugir, surdo, abafando a voz...
.
Depois, na tua casa ao desmazelo,
Cheia de colares, jóias, caixinhas,
Pexisbeques, espelhos e coisinhas,
.
Houve muita fita e muito gelo
Antes de te renderes ao assalto
Do meu caralho já em sobressalto.

Manuel Cadafaz de Matos ~ Beresith


design gráfico, composição e tiragem
não são referidos
.
.
Múltiplos os acordes
sobre o marfim gasto de
um piano que não tenho
.
para o meu filho comprar-
ei(s) um: pendor de mim
p'ra harmonia da tua planície de mulher
.
os corpos puros não se entercho-
-Ca(i)m (e) volatiza(m)-se
nas pautas de um piano que não tenho

José Geraldo, João Paulo Maia, Jorge Trindade ~ O Dente de Chagal


Fenda 1983
[500 exemplares]
.
Uma destas manhãs acordei com os olhos pendurados.
Eu explico. Os olhos pendurados por duas molas num
fio que paralelo à sombra me atravessava a cabeça
branco por dentro olhando agora os olhos ou eu o meu
outro digo qualquer coisa porque sei que é mais ou menos
do que eu afinal digo só meu outro. Não sei se sabem
como é.
.
Está-se high como se diz alto down in encore out
tudo tout c'est ou é comment c'est. A gente começa
a ver coisas pim pim discurso do ser como é assim: In-
finitas. Alguns poetas como dizem & outros também
grandes místicos teem assim a percepção das
coisas: Infinitas.

Pina Bausch ~ Falem-me de amor


textos de vários autores
e uma entrevista a Pina Bausch
tradução de Miguel Serras Pereira
design de João Bicker
1ª ed, Fenda 2005
2ª ed, Fenda 2006
.
Ao longo dos últimos vinte anos, a pesquisa de uma "linguagem física", pressentida por Artaud, o exemplo do Living Theatre, as filosofias da criatividade, os exercícios de Grotowski, o trabalho sobre o personagem efectuado pelo Téâtre du Soleil, a experiência de um actor como Leo De Bernardinis, ou a de Anna Sagna e da companhia Sosta Palmizi, e enfim a experiência inovadora de um teatro para crianças, têm em comum a recusa da imitação passiva e o imperativo de uma ética do espectáculo que pode justificar, em parte, a sua rejeição de uma dependência relativamente ao texto. Mas o "poder libertador do corpo", a criatividade espontânea e a improvisação não são em si próprios um "abre-te, sésamo", permitindo aceder às vias da arte. É o que nos demonstram as dificuldades que, no seu trabalho, Pina Bausch e a sua companhia conheceram. Depois de A Sagração da Primavera e depois de Os Sete Pecados Capitais, no momento da transformação mais radical, os bailarinos consideraram que o movimento estava a ser sacrificado. "E todavia, eu sentia, sabia, que só as pessoas fantásticas podiam obter um resultado tão grande com tão pouco movimento".

Paola D'Agostino ~ Largo das Necessidades


tradução de Miguel Serras Pereira
design de João Bicker
fotografias de Stefano Riva
Fenda 2006
.
Sou de um lugar que não existe, e procuro renascer aqui, onde não nasci senão de coração. Cuido o meu amor mal-cuidado com as recusas que se transformam em barreiras e me fortalecem a alma quando não a destroem. De Hondarribia, onde a minha mãe me deixou sozinha, lembro-me de um novelo de redes para desenrolar e de um centro de cidade sombrio, de Idade Média que cheira a mar.
Gostava de ali estar, em frente à praia era já França e a montanha atrás dela era Guadalupe, com o seu nome de África e as suas ovelhas brancas.

Matsuo Bashô ~ O caminho estreito para o longínquo norte


(capa da 2ª ed)
.
capa de João Bicker
versão de Jorge Sousa Braga
1ª ed Fenda 1991
2ª ed Fenda 1995
[1500 exemplares]
.
Os meses e os dias são viajantes da eternidade. Assim como o ano que passa e o ano que vem. Para aqueles que se deixam flutuar a bordo dos barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagem e a sua casa é o espaço sem fim. Dos homens do passado, muitos morreram em plena rota. A mim mesmo, desde há anos, me perseguem pensamentos de vagabundo mal vejo uma núvem arrastada pelo vento.
Passei o último inverno percorrendo a costa. No outono regressei à minha cabana nas margens do rio. Mal tivera tempo de limpar teias de aranha quando me surpreendeu o fim do ano. Em breve, a névoa da primavera cobriria o céu e os campos, e eu queria atravessar Shirakawa nessa altura. Tudo o que via me convidava a viajar. Tão possuído estava pelos deuses que não conseguia dominar os meus pensamentos. Os espíritos do caminho faziam-me sinais, e dei-me conta que não podia adiar por mais tempo a minha partida.
Remendei as minhas calças rotas, mudei as tiras do meu chapéu de palha e untei as minhas pernas para as fortalecer. A ideia da lua na ilha de Matsushima enchia as minhas horas. Cedi a minha cabana e fui para casa de Sampu. Num dos pilares deixei este poema:
.
. . . . .Também esta cabana de colmo
. . . . .se há-de transformar
. . . . .em casa de bonecas.

Pedro Proença ~ A arte ao microscópio


desenho gráfico de João Bicker
capa de Pedro Falcão sob ilustração do autor
ilustrações de Pedro Proença
Fenda 2000
.
Ergo os braços e contorço-me espreguiçando-me. Não há ninguém em volta para ver. Também não há nada para ver. A preguiça prepara o ócio, é o seu couvert, o seu aperitivo. Não a preguiça como fuga à acção, mas a preguiça como o prazer da imobilidade, do estar quieto no seu cantinho.
Há em Matisse uma celebração perpétua da preguiça. Quando mudamos de registo e passamos, por exemplo, para um Pollock, entramos noutro mundo no qual não podemos viver sem ansiolíticos.
Esta preguiça essencial é hoje uma resistência, isto é, uma urgência.
Dizia Nitzche que o pensamento era pedestre, ou que assim se tornava propício. Mas o romancista não dispensa o conforto da cadeira. Ele não vê o mundo de uma forma profética ou genealógica, mas encosta-se confortavelmente e deixa que as coisas comecem a tomar forma, se encadeiem e desapareçam consumada a escrita. A cadeira é o pilar do romanesco, porque o romanesco não consiste em ideias, mas em deixá-las assentar até se tornarem irreconhecíveis entre a multidão de acontecimentos.
Também a pintura requer que o traseiro caia em algum lado. É claro que se pode pintar de pé ou aos pulos, mas prefiro sentar-me no chão de pernas cruzadas, mesmo que isso me custe dores nas costas. Não sei de onde esse hábito me vem, se há em mim uma costela oriental ou africana, mas já na escola e no liceu era de uso sentar-me de pernas cruzadas sobre a cadeira, escondendo esta posição com o tampo da mesa. É exactamente aquilo que estou agora a fazer.

Manuel Silva Ramos ~ O Tanatoperador



desenho gráfico de João Bicker
colecção Fenda Luminosa 9
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 exemplares]
.
"Caro Senhor,
.
Muito lhe agradeço a sua encomenda que me deixou mais contente que um felizardo desempregado que ganhou o loto depois de ter aceitado um lote num cemitério.
Porém e devido ao facto considerável que é de ver alguém nesta cidade que pensa na minha pessoa humilde refreio imediatamente o desejo de o mandar à merda mas mesmo assim vou-lhe enviar duas pequenas reflexões:
Primeiro: é muito raro eu ir às putas; prefiro ficar em casa.
Segundo: a minha mulher que no Céu Esteja tinha um guarda-roupa igualzinho.
Espero que lhe tenha tirado todas as dúvidas e dado todas as explicações...
.
Atenciosamente"

Fenda (in) Finda


textos e poemas de Brigitte Detry, Alberto Antal, Fernando Cascais,
Joaquim M Chaves, Fiama H Pais Brandão, Miguel Esteves Cardoso,
António Manuel Pocinho, Fernando Luís, Ernesto de Sousa,
Gillo Dorfles, A Diogo.
Fenda 1983
[1000 exemplares]
.
.
Revolver Inquieto ~ António Manuel Pocinho
[excerto]
.
agora que tenho de pagar a renda da casa
e as contas do sol e do gás
não peço que te importes com o meu desemprego
nem com a guerra no mundo
telefonar-te-ei sempre do líbano.....da argentina
do chile.....de portugal
com o coração blindado de notícias
e um céu cor de linho para te oferecer
.
entrámos na história por porta errada
não são apenas grades que olham o teu corpo anfíbio
são os rios de saudade e de desejo
porque aqui não haverá mais autocarros da carris
mas gatilhos carregados de gente para
santa apolónia
mesmo que os empregados de escritório
e as operárias das fábricas dos arredores
mal saibam os favores que devem à burguesia

Henri Michaux ~ O retiro pelo risco


organização, posfácio e notas de Joëlle Ghazarian
introdução de Pierre Bettencourt
tradução de Júlio Henriques
desenho gráfico de João Bicker
colecção Fenda Luminosa 10
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 exemplares]
.
Em Biliuli eles são tímidos. E não o são menos em Liliuli. A capital foi edificada defronte de uma grande montanha, de um grande pico. Este pico é anónimo. Eles não se atrevem a dar nomes aos picos. Não se atrevem a dar nomes às montanhas.
Dão-nos às ribeiras e por vezes aos rios pequenos. Não aos grandes. Imaginem a insolência que tal coisa não seria. Só se fala disso em ambíguas alusões que não refiram nenhum rio, fosse ele deus, e que nada possam conter que o contrarie.
Em contrapartida, dão nomes aos regatos. E às suas próprias pessoas, dirá você. Não senhor, nem sempre, e nunca antes de atingirem a idade adulta.
Às grandes unidades em geral, não dão nomes nenhuns. Receiam, se as nomeassem, atribuir-lhes existência demais.
Por isso me via eu em grandes dificuldades para me orientar. E caso houvesse um nome, mesmo longinquamente alusivo e bem pouco apto a dar com a coisa ou o lugar, ainda assim receavam dar-mo a conhecer, com medo de lhe conferirem uma nova e súbita importância.
Entre eles me aprazia...

Miguel Serras Pereira ~ Corça


capa de Fernando Zeferino Ferreira
colecção As Lágrimas de Eros 6
Fenda 1982
[500 exemplares]
.
Este Poema Chama-se Uma Casa
.............................................................para o Joaquim Oliveira Caetano
.
Este poema escrevo-o para ter tempo de habitar uma casa
moldar algum barro tocar algumas palavras
Este poema chama-se uma casa
.
Tem uma porta grossa para transpor devagar
uma cama antiquíssima e uma hora de calma
algum calor no ar
.
Este poema escrevo-o para erguer quatro muros espessos
é uma casa com uma mesa imensa e um pão quente
e o tempo de me habituar
.
Este poema chama-se mágoa e mágoa e nos seus lábios
eu chamo-me as palavras que te chamam e nos chamam
os muros de uma casa a respirar

Carlos Vidal ~ Definição de arte política


design de João Bicker
colecção fósforo 7
Fenda 1997
[1000 exemplares]
.
No ocidente , a arte é jogada de acordo com as necessidades de um mercado autónomo e para um mercado global sob a forma de indústrias culturais. O rosto da globalização é a industrialização do pensamento e não a sua emancipação. Noutros momentos, dependendo de ciclos políticos e económicos, a produção artística é um fardo enviado para a salvação subsidiária, porque não compensadora economica e/ou eleitoralmente.
Facto assimilado e para ser visto à luz da relação entre estes estados (estalinista, mussoliniano, hitleriano, maoista) e a sociedade na sua globalidade. Registe-se que a intervenção destes aparelhos centralizados, além de monopolizadora da vida artística, foi sempre proporcional à sua intervenção dirigista das actividades económicas, que beneficiaram sistematicamente uma classe política legitimada pela lei e pela ideologia, lei que não reconheceu nem aceitou nenhuma forma de liberdade individual exterior à hierarquia.

Carlos Couto Sequeira Costa ~ Notebooks


design de João Bicker
Fenda 1997
[300 exemplares]
.
/
.
o poema : uma língua rasgada/ de
rasgões-ruídos
trinquei a língua, ficou pendurada,
teria uns onze ou doze
anos mal
ditos
fiquei depois sem som
sem depois nem dom
_____e o rasgão
não sarou

Henry Miller ~ Viragem aos oitenta


tradução de Sofia Castro Rodrigues
desenhos de Bob Nash
desenho gráfico de Mário Feliciano
colecção Fenda Luminosa 4
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
.
Talvez o mais reconfortante no envelhecimento seja a crescente capacidade de não levar as coisas a sério. Uma das grandes diferenças entre um sábio genuíno e um padre é a alegria. Quando o sábio ri, trata-se de um riso que vem da barriga, quando o padre ri, o que aliás acontece muito raramente, fá-lo com o lado errado da cara. O homem verdadeiramente sábio - mesmo o santo! - não se preocupa com a moral. Está acima e para além de tais considerações. É um espírito livre.
Com o avançar dos anos, os meus ideais - que normalmente nego ter - alteraram-se definitivamente. O meu ideal é ser livre de ideais, livre de princípios, livre de doutrinas e ideologias.

Leonel Moura ~ Os homens lixo


capa de Leonel Moura
concepção gráfica de João Bicker
colecção Fósforo 3
Fenda 1996
[1200 exemplares]
.
Ouve-se hoje com frequência, em declarações de índole diversa, falar de legalidade como princípio geral de conduta. Numa adopção da própria letra da lei como baliza dos comportamentos. Assim, certos actos objectivamente imorais justificam-se por não haver nada na lei que os condene.
Ora a ética não se define através de textos, regras ou modelos, mas pela natureza mesma dos relacionamentos humanos no seu espaço comum.
Perderam-se assim certas noções essenciais de comportamento, como sejam a honestidade, a dignidade e a verdade. Quando a condução dos negócios, privados e públicos, o exigem, poderá adoptar-se em "consciência" e sem qualquer pudôr, a desonestidade, a indignidade e a falsidade, desde, claro está, que na letra da lei nada conste que o impeça.
A noção contemporânea de homem de bem, significa não um homem com um elevado sentido de comportamento ético, mas aquele que mediante todos os expedientes, dos mais triviais aos mais indecentes, se vai conquistando uma reputação. Até porque perante a actual configuração do sucesso, mundano, profissional ou político, poucos escapam a uma multiplicidade de actos desonestos, enganadores e aviltantes.

Da miséria no meio estudantil


Da miséria no meio estudantil
considerada nos seus aspectos
económico, político, sexual
& especialmente intelectual
& de alguns meios para a prevenir
por membros da Internacional Situacionista
& estudantes da cidade de Estrasburgo
selecção de textos
e tradução de Júlio Henriques
Fenda 1983
.
Considerada em si mesma, a «juventude» constitui um mito publicitário já profundamente ligado ao modo de produção capitalista, como expressão do seu dinamismo. Esta ilusória primazia da juventude tornou-se possível com a nova arrancada da economia, após a Segunda Guerra Mundial, na sequência da introdução maciça no mercado de toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, papel este que assegura um diploma de integração na sociedade do espectáculo. Mas a explicação dominante do mundo encontra-se de novo em contradição com a realidade socio-económica (porque atrasada em relação a esta), e é justamente a juventude que começa por afirmar um irresistível furor de viver, insurgindo-se espontaneamente contra a chatice quotidiana e o tempo morto que o velho mundo continua a segregar através das suas diferentes modernizações. A fracção revoltada da juventude exprime a pura recusa, sem consciência duma perspectiva de superação; exprime a sua recusa niilista. Esta perspectiva busca-se e constitui-se por toda a parte do mundo. Do que precisa é de atingir a coerência da crítica teórica e a organização prática duma tal coerência.