...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

João Tenório Maia ~ Atum


desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda 1998
[750 exemplares]
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Do cimo do pódio duma aula
Das belas arte, de modelo nu,
Ostentavas o teu formoso cu,
Como uma pantera dentro da jaula.
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E olhavas-me meiga e feroz
Lá do teu olímpico porte altivo.
E tinhas na cona o fogo vivo
A rugir, surdo, abafando a voz...
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Depois, na tua casa ao desmazelo,
Cheia de colares, jóias, caixinhas,
Pexisbeques, espelhos e coisinhas,
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Houve muita fita e muito gelo
Antes de te renderes ao assalto
Do meu caralho já em sobressalto.

Manuel Cadafaz de Matos ~ Beresith


design gráfico, composição e tiragem
não são referidos
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Múltiplos os acordes
sobre o marfim gasto de
um piano que não tenho
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para o meu filho comprar-
ei(s) um: pendor de mim
p'ra harmonia da tua planície de mulher
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os corpos puros não se entercho-
-Ca(i)m (e) volatiza(m)-se
nas pautas de um piano que não tenho

José Geraldo, João Paulo Maia, Jorge Trindade ~ O Dente de Chagal


Fenda 1983
[500 exemplares]
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Uma destas manhãs acordei com os olhos pendurados.
Eu explico. Os olhos pendurados por duas molas num
fio que paralelo à sombra me atravessava a cabeça
branco por dentro olhando agora os olhos ou eu o meu
outro digo qualquer coisa porque sei que é mais ou menos
do que eu afinal digo só meu outro. Não sei se sabem
como é.
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Está-se high como se diz alto down in encore out
tudo tout c'est ou é comment c'est. A gente começa
a ver coisas pim pim discurso do ser como é assim: In-
finitas. Alguns poetas como dizem & outros também
grandes místicos teem assim a percepção das
coisas: Infinitas.

Pina Bausch ~ Falem-me de amor


textos de vários autores
e uma entrevista a Pina Bausch
tradução de Miguel Serras Pereira
design de João Bicker
1ª ed, Fenda 2005
2ª ed, Fenda 2006
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Ao longo dos últimos vinte anos, a pesquisa de uma "linguagem física", pressentida por Artaud, o exemplo do Living Theatre, as filosofias da criatividade, os exercícios de Grotowski, o trabalho sobre o personagem efectuado pelo Téâtre du Soleil, a experiência de um actor como Leo De Bernardinis, ou a de Anna Sagna e da companhia Sosta Palmizi, e enfim a experiência inovadora de um teatro para crianças, têm em comum a recusa da imitação passiva e o imperativo de uma ética do espectáculo que pode justificar, em parte, a sua rejeição de uma dependência relativamente ao texto. Mas o "poder libertador do corpo", a criatividade espontânea e a improvisação não são em si próprios um "abre-te, sésamo", permitindo aceder às vias da arte. É o que nos demonstram as dificuldades que, no seu trabalho, Pina Bausch e a sua companhia conheceram. Depois de A Sagração da Primavera e depois de Os Sete Pecados Capitais, no momento da transformação mais radical, os bailarinos consideraram que o movimento estava a ser sacrificado. "E todavia, eu sentia, sabia, que só as pessoas fantásticas podiam obter um resultado tão grande com tão pouco movimento".

Paola D'Agostino ~ Largo das Necessidades


tradução de Miguel Serras Pereira
design de João Bicker
fotografias de Stefano Riva
Fenda 2006
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Sou de um lugar que não existe, e procuro renascer aqui, onde não nasci senão de coração. Cuido o meu amor mal-cuidado com as recusas que se transformam em barreiras e me fortalecem a alma quando não a destroem. De Hondarribia, onde a minha mãe me deixou sozinha, lembro-me de um novelo de redes para desenrolar e de um centro de cidade sombrio, de Idade Média que cheira a mar.
Gostava de ali estar, em frente à praia era já França e a montanha atrás dela era Guadalupe, com o seu nome de África e as suas ovelhas brancas.

Matsuo Bashô ~ O caminho estreito para o longínquo norte


(capa da 2ª ed)
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capa de João Bicker
versão de Jorge Sousa Braga
1ª ed Fenda 1991
2ª ed Fenda 1995
[1500 exemplares]
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Os meses e os dias são viajantes da eternidade. Assim como o ano que passa e o ano que vem. Para aqueles que se deixam flutuar a bordo dos barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagem e a sua casa é o espaço sem fim. Dos homens do passado, muitos morreram em plena rota. A mim mesmo, desde há anos, me perseguem pensamentos de vagabundo mal vejo uma núvem arrastada pelo vento.
Passei o último inverno percorrendo a costa. No outono regressei à minha cabana nas margens do rio. Mal tivera tempo de limpar teias de aranha quando me surpreendeu o fim do ano. Em breve, a névoa da primavera cobriria o céu e os campos, e eu queria atravessar Shirakawa nessa altura. Tudo o que via me convidava a viajar. Tão possuído estava pelos deuses que não conseguia dominar os meus pensamentos. Os espíritos do caminho faziam-me sinais, e dei-me conta que não podia adiar por mais tempo a minha partida.
Remendei as minhas calças rotas, mudei as tiras do meu chapéu de palha e untei as minhas pernas para as fortalecer. A ideia da lua na ilha de Matsushima enchia as minhas horas. Cedi a minha cabana e fui para casa de Sampu. Num dos pilares deixei este poema:
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. . . . .Também esta cabana de colmo
. . . . .se há-de transformar
. . . . .em casa de bonecas.

Pedro Proença ~ A arte ao microscópio


desenho gráfico de João Bicker
capa de Pedro Falcão sob ilustração do autor
ilustrações de Pedro Proença
Fenda 2000
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Ergo os braços e contorço-me espreguiçando-me. Não há ninguém em volta para ver. Também não há nada para ver. A preguiça prepara o ócio, é o seu couvert, o seu aperitivo. Não a preguiça como fuga à acção, mas a preguiça como o prazer da imobilidade, do estar quieto no seu cantinho.
Há em Matisse uma celebração perpétua da preguiça. Quando mudamos de registo e passamos, por exemplo, para um Pollock, entramos noutro mundo no qual não podemos viver sem ansiolíticos.
Esta preguiça essencial é hoje uma resistência, isto é, uma urgência.
Dizia Nitzche que o pensamento era pedestre, ou que assim se tornava propício. Mas o romancista não dispensa o conforto da cadeira. Ele não vê o mundo de uma forma profética ou genealógica, mas encosta-se confortavelmente e deixa que as coisas comecem a tomar forma, se encadeiem e desapareçam consumada a escrita. A cadeira é o pilar do romanesco, porque o romanesco não consiste em ideias, mas em deixá-las assentar até se tornarem irreconhecíveis entre a multidão de acontecimentos.
Também a pintura requer que o traseiro caia em algum lado. É claro que se pode pintar de pé ou aos pulos, mas prefiro sentar-me no chão de pernas cruzadas, mesmo que isso me custe dores nas costas. Não sei de onde esse hábito me vem, se há em mim uma costela oriental ou africana, mas já na escola e no liceu era de uso sentar-me de pernas cruzadas sobre a cadeira, escondendo esta posição com o tampo da mesa. É exactamente aquilo que estou agora a fazer.

Manuel Silva Ramos ~ O Tanatoperador



desenho gráfico de João Bicker
colecção Fenda Luminosa 9
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 exemplares]
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"Caro Senhor,
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Muito lhe agradeço a sua encomenda que me deixou mais contente que um felizardo desempregado que ganhou o loto depois de ter aceitado um lote num cemitério.
Porém e devido ao facto considerável que é de ver alguém nesta cidade que pensa na minha pessoa humilde refreio imediatamente o desejo de o mandar à merda mas mesmo assim vou-lhe enviar duas pequenas reflexões:
Primeiro: é muito raro eu ir às putas; prefiro ficar em casa.
Segundo: a minha mulher que no Céu Esteja tinha um guarda-roupa igualzinho.
Espero que lhe tenha tirado todas as dúvidas e dado todas as explicações...
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Atenciosamente"

Fenda (in) Finda


textos e poemas de Brigitte Detry, Alberto Antal, Fernando Cascais,
Joaquim M Chaves, Fiama H Pais Brandão, Miguel Esteves Cardoso,
António Manuel Pocinho, Fernando Luís, Ernesto de Sousa,
Gillo Dorfles, A Diogo.
Fenda 1983
[1000 exemplares]
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Revolver Inquieto ~ António Manuel Pocinho
[excerto]
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agora que tenho de pagar a renda da casa
e as contas do sol e do gás
não peço que te importes com o meu desemprego
nem com a guerra no mundo
telefonar-te-ei sempre do líbano.....da argentina
do chile.....de portugal
com o coração blindado de notícias
e um céu cor de linho para te oferecer
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entrámos na história por porta errada
não são apenas grades que olham o teu corpo anfíbio
são os rios de saudade e de desejo
porque aqui não haverá mais autocarros da carris
mas gatilhos carregados de gente para
santa apolónia
mesmo que os empregados de escritório
e as operárias das fábricas dos arredores
mal saibam os favores que devem à burguesia

Henri Michaux ~ O retiro pelo risco


organização, posfácio e notas de Joëlle Ghazarian
introdução de Pierre Bettencourt
tradução de Júlio Henriques
desenho gráfico de João Bicker
colecção Fenda Luminosa 10
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 exemplares]
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Em Biliuli eles são tímidos. E não o são menos em Liliuli. A capital foi edificada defronte de uma grande montanha, de um grande pico. Este pico é anónimo. Eles não se atrevem a dar nomes aos picos. Não se atrevem a dar nomes às montanhas.
Dão-nos às ribeiras e por vezes aos rios pequenos. Não aos grandes. Imaginem a insolência que tal coisa não seria. Só se fala disso em ambíguas alusões que não refiram nenhum rio, fosse ele deus, e que nada possam conter que o contrarie.
Em contrapartida, dão nomes aos regatos. E às suas próprias pessoas, dirá você. Não senhor, nem sempre, e nunca antes de atingirem a idade adulta.
Às grandes unidades em geral, não dão nomes nenhuns. Receiam, se as nomeassem, atribuir-lhes existência demais.
Por isso me via eu em grandes dificuldades para me orientar. E caso houvesse um nome, mesmo longinquamente alusivo e bem pouco apto a dar com a coisa ou o lugar, ainda assim receavam dar-mo a conhecer, com medo de lhe conferirem uma nova e súbita importância.
Entre eles me aprazia...