...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Martin Andrew Kayman ~ Alguns dos Nossos Melhores Poetas são Fascistas: Uma Introdução a Ezra Pound













(capa da 2ª edição)
colecção Aladino, 2
Fenda, 1984
(1ª edição: Fenda, 1981)


É este sentido amplo de "poetas" ou "artistas" dentro de uma estética democrática que eu quero sublinhar. A primeira coisa que este modelo nos mostra é que os nossos actuais critérios estécticos não são democráticos. Os critérios de que nos servimos para classificar Pound como "bom" ou "grande" são critérios que recusam o modelo de Jones, o qual, sustentando que todos os homens são, de diversos modos, criadores, nada tem a ver com a "excelência". Tais critérios, longe de serem democráticos, são antes determinados por uma concepção hierárquica da arte.
Estarei a afirmar aquilo que é simplesmente óbvio? Bem, se podemos aceitar - ainda que tal me pareça difícil e penoso - que os nossos critérios estéticos não são democráticos, não se justificará ao menos indagar se na realidade eles são "espontâneos"? É evidente que parecem sê-lo, e assim, se continuamos seguros de que o são, significará isso que nós somos "espontaneamente" não democráticos? E quando eles não são vistos como espontâneos, mas sim determinados, em que ficamos... com este prazer irresistível?
O que podemos dizer é que na medida em que temos uma concepção hierárquica da arte, não temos uma concepção democrática da arte. E no entanto afirmamos ter uma concepção democrática da política. Não admira pois que o dilema - boa poesia, má política - surja. E o que torna o dilema premente, é isto:  é que ele nos conduz ao reconhecimento de que o nosso prazer estético "espontâneo" não é democrático. E se ele não é democrático, em que medida são verdadeiramente democráticos os nossos valores políticos?
Como é possível ter uma perspectiva "política" democrática e um sentido estético não-democrático? A teoria política liga-se indubitavelmente à razão, à lei e à prática. Ela é, enquanto teoria, essencialmente racionalista, e é evidente que nós somos capazes de racionalizar a nossa posição como uma posição política democrática. É mais fácil que fazer o mesmo em relação ao prazer. Mas sem uma crítica da política do nosso prazer a nossa posição política em geral não será firme: pode acontecer-nos sermos apanhados a fruir a poesia de um fascista.
Apresentam-se duas alternativas: continuar agonizando sobre o nosso incipiente fascismo estético; ou então arcar com a dura tarefa de uma análise do prazer. E, em última análise, é aqui que Pound nos pode ser útil. Uma vez que é tão agradável a sua poesia, dá-nos a oportunidade de encetarmos uma crítica do prazer poético de uma forma exemplar, pois, de um ponto de vista histórico, Pound pode ser visto como o exemplo da "melhor" poesia e da "pior" política da nossa era.
Uma tal crítica do prazer nada tem a ver com padrões de "gosto", os quais fazem parte da ideologia que se quer analisar. Nem, acrescente-se, terá muito que ver com a actual especialização em "pupolarismo". Ouvir os grupos folk, em vez de Wagner, não dará resultado. Na verdade, a crítica do prazer na "arte de nível" é apenas parte de um projecto que se realiza através de uma crítica da "cultura popular". Dentro do nosso modelo, a "arte" não é gosto; é sobretudo os meios da produção de significado. E a "política" será então as relações sociais da produção de significado. A nossa crítica estética - a nossa economia política do prazer - liga-se então à análise dos meios de produção de significado; os seus auxiliares são a linguística e a psicanálise e ainda a educação e a economia: como, por exemplo, na noção de Stephen Heath de "práticas específicas de significação", ou nos "meios de produção de efeitos literários" de Pierre Macherey, ou na noção poundiana de técnica. Ao analisarmos os meios de produção de efeitos literários de Pound, podemos prestar justiça ao prazer que confessamos ter tido, ao mesmo tempo que estabelecemos as bases da nossa crítica. Deste modo apresentamos uma crítica da "arte em nome da arte" que é uma análise política: uma análise da política do prazer.
Nisto não há que tomar partido por Pound, pelo governo dos E.U.A., pelos seus defensores ou pelos seus detractores. Não se trata de atacar nenhum deles. Enquanto se propõe a si mesma como análise do nosso prazer, ela é, se algo é, um ataque a nós mesmos: à nossa ficção do prazer espontâneo, à nossa sedução pela estética.
O fenómeno de Pound estabelece uma antítese radical entre os termos da política e os da arte, a qual tem de ser resolvida por uma síntese radical da arte e da política. A desgraça de Pound é conceber uma contradição entre arte e política à maneira liberal burguesa. Essa contradição pode provocar uma nova conjuntura do estético e do político: a democratização da arte - aquilo a que poderíamos chamar revolução cultural. Essa revolução deve começar por nós, numa crítica da política do nosso prazer.

Tiago Gomes ~ Viola-me Eléctrica













desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda, 1998
[1100 ex]


Avé Avô Cesariny

Um homem solitário a caminho da praia +
o bulício das intrigas de café +
uma conversa desconexa +
uma fórmula minimal repetitiva +
um sub-real encadeante +
quezílias imorais sociais -
1 poeta e pitor infeliz =
Avé Cesariny, positivo e negativo
poetoupeira lasciva
debochado dada
abissalmente graficoposto
agoniado ou bem disposto
lacónico animal subterrâneo
roupa suja para lavar em máquina eclética.


O Último Abraço

Pensara várias vezes
em ser um kamikaze
com uma bomba no peito
e dar um abraço
apertado e cordial
ao primeiro-ministro do seu país.

Ernesto Sampaio ~ Fernanda


(capa da 1ª ed)
capa de Mário Feliciano
desenho gráfico de Secretonix
Fenda, 2000


(capa da 2ª ed)


(capa da 3ª ed)


A Fernanda veio passar comigo a entrada no ano 2000. Vi-a viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Um beijo morno de despedida: «Não te esqueças de cortar as unhas à cadela e de dar o 'program' aos gatos. Ah, e também não te esqueças de me ir esperar a Santa Apolónia no domingo, à hora do costume...» E lá seguiu para o Porto no carro do João Grosso. Retrospectivamente, a recordação mais impressiva que conservo da cena é a do olhar de tristeza da Rosa, a nossa galga, vendo a dona afastar-se. Havia entre as duas uma relação fortíssima. Aliás, sempre me surpreendeu o poder da Fernanda sobre os animais: a um olhar, a um gesto, sem levantar a voz, tranquilizavam-se, obedeciam-lhe cordatos. Eu, se mandar a Rosa ir numa direcção, é garantido que vai na direcção contrária...
Falei da relação fortíssima entre uma mulher e uma cadela, e bem sei que é abusivo atribuir a um animal algo de parecido com sentimentos humanos. Pois é... Mas cada vez que levo a cadela ao cemitério, e ela aproveita para se rebolar sobre as campas (a Fernanda está debaixo de um magnífico relvado, à inglesa, de campas rasas), sempre que chega ao sítio onde a dona está enterrada, pára e assim fica de focinho entre as patas, a escarvar lentamente a terra.
Agora, dormimos todos na mesma cama: eu, a cadela, o gato (Artur) e as duas gatas (a Fina e a Nina). Numa destas noites, os quatro animais ergueram-se súbita e simultaneamente e ficaram sentados, hirtos, a seguir fixamente com o olhar um ponto, para mim invisível, que se deslocava no espaço, enquanto eu sentia o rosto batido por um sopro gelado.
Disse que vi a Fernanda viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Dois dias depois vieram anunciar-me que tinha morrido. No avião para o Porto não me saía da cabeça que se tratava de um engano, e estava ansioso por chegar, vê-la, desfazer o equívoco. Depois... a morgue, as burocracias, a entrada naquele quarto de hotel, a cigarreira e o livro abertos na mesa de cabeceira, o colar em cima da cama...

Peter Sloterdijk ~ Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária


Um diálogo com Carlos Oliveira
tradução do alemão de Cristina Peres
capa e orientação gráfica de João Bicker
Fenda, 1999


(...) Em meados dos anos 70, compreendi que o mito da revolução estava morto ou, para ser exacto, não o compreendi, cheirei-o: tinhamos entre nós um grande cadáver ideológico que começava a cheirar mal e os seus defensores também não cheiravam bem. O político seria a partir de então, e por muito tempo, um terreno sem esperança, daí até algo de novo não havia nada a esperar. Da revolução não permanecia mais que uma vaga nostalgia, o desejo de uma outra vida mais rica. Pode-se dizê-lo calmamente deste modo ingénuo porque mesmo que se dissesse de forma mais elaborada significaria o mesmo. Nós eramos obrigados a ter um outro tipo de análise, uma análise do desejo, a que chamavamos psicanálise - o que era uma designação errónea porque a psicanálise clássica diz que quem se insurge não tem razão, quando o que nós queriamos ouvir era que quem se insurge tem razão. O cadáver da revolução decompôs-se pouco a pouco até ao esqueleto e ali vieram à luz alguns radicais não redutíveis. Pôde ver-se, nesse momento, que no complexo formado pela revolução tinham existido três motivos ou figuras de base absolutamente diferentes, sendo cada uma delas autónoma e vivendo por si, mesmo se a figura ideológica na qual estavam englobados se decompôs. A primeira pedra, radical primeiro da grande revolução mítica é o Estado de direito burguês com o seu pathos formal e igualitarista. Mas, após 1945, já se tinha mais ou menos estabelecido entre nós que não estavamos exageradamente reconhecidos por tê-lo, não faziamos mais que tomá-lo como ponto de partida para exigir muito mais. Mas e este mais, o que era este mais? Para responder a esta questão é preciso conhecer ambas as outras formas de grande reviravolta. O segundo radical da revolução é a experiência individual do nascimento, a dramática ruptura da criança para fora do corpo da mãe em direcção ao mundo. Isto permanece latente e presente em cada indivíduo como cena primitiva constituindo a vanguarda das esperanças futuras de novas rupturas em direcção a condições de vida menos estreitas. A saída deste estreito canal original no qual tudo poderia já ter chegado ao fim: isto é o protótipo subjectivo da libertação...

Fiama Hasse Pais Brandão ~ Teatro - Teatro


capa de João Bicker
[livro reune as peças Poe ou o Corvo, A Rendição de Breda,
Eu vi o Epidauro (Sobre o Teatro)
, e Ensaio Mortal]
Fenda, 1990


1. Talvez eu queira dizer, neste espectáculo, o que Shakespeare já disse (nada menos). Que na vida há sempre uma certa margem de teatralidade, e no teatro sempre uma certa margem de vida. Algo pouco profundo. Um trompe-l'oeil, afinal. Valeria a pena dizê-lo, redizê-lo?

2. No teatro contemporâneo, quer dizer, na consciência moderna, é tão difícil fazer acontecer qualquer coisa simultaneamente com o diálogo - sendo este, exclusivamente, veículo de intensa expressividade egótica ou mundividente -, que recorri a uma espécie de trama policial revisteira, maneira visível e objectiva de fazer acontecer algo por fora.

3. E o final é óbvio. Depois do tiro, morre a atriz, fica a personagem. Mas qual personagem? Essa, a eterna, já tanto se modificou, no teatro do Ocidente, já tantas réplicas trocou com as outras... Essa transformou-se e transformar-se-á infinitamente, no Teatro, arte, como todas as outras, da transmutação.

[da introdução a Eu Vi o Epidauro (Sobre o Teatro)]

Patrícia Portela ~ Se não bigo, não digo


texto e desenhos de Patrícia Portela
desenho gráfico de Mário Feliciano
Novos Monstros, 5
Fenda, 1999
[400 ex]


Uma vez conheci o homem mais só do mundo.
Chamava-se Adão. Tinha uma maçã e uma solidão, mas nenhuma delas parecia ser grande companhia.
Não tinha pecados, nem jardim, nem vontade de comer. Para falar a verdade, não tinha mesmo nada para fazer e por isso se aventurou a uma grande jornada, onde conheceu muitos homens e mulheres, todos com umbigo. Foi assim que descobriu que não era real.
A solidão de Adão tinha directamente a ver com um buraco na barriga que lhe dizia que tinha sido cozinhado e não parido.
Decidido a tornar-se real, Adão procura uma loja de penhores.
- Boa tarde, eu gostaria de comprar um umbigo para disfarçar o meu aspecto pouco real!
O vendedor diz que só tem um. 75 anos mas em muito bom estado. Pede 2000 contos. Adão só tem uma maçã. O vendedor não faz negócio.
Adão pensa e tem uma ideia.
- Dou-lhe a minha costela!
Mmmmmm... o mercador tem uma churrascada logo à noite... Aceita.
Adão está contente e o traficante também.
Ambos celebram toda a noite e passam as 10h, as 11h, e à meia-noite... Trrrrrrrrrrriiiiiiimmmmmm, quando todas as abóboras se transformam em contos de fadas, a costela transforma-se em Eva.

Alface ~ A prima fica por cima


ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker|FBA
Fenda das raparigas, 11
Fenda, 2001
[1100 ex]


Seria talvez de bom tempo 1 explicação. Como quase sempre.
Ala explicou à família, naquele seu invertido jeito aristocrático, que vinha passar uns tempos com eles por especial deferência pela avó Rosa (Cf. Avó não pise...).
A saudosa velhota vendera-lhe a teoria que 1 presença feminina iluminaria aquelas criaturas. A serigaita da neta faria o serviço a contento, achava a velha.
Para a jovem Ala foi mudança mesmo a calhar pois os pais acabavam de expulsá-la definitivamente de casa. Sem apelo nem agravo. Rua! Vá lá saber-se porquê.
Vitório Branco concordou que aquele seu irmão (cuja existência havia esquecido) exibia maus fígados, mas daí a correr com uma filha de tenra idade vai uma certa distância.
Ou não?
Os gémeos condoeram-se com a infelicidade da prima e apenas Nino se manteve insensível às desgraças que ela deu de desfiar: mendiga por conta de um cartel de pedintes cariocas, menina-bala num circo ambulante russo, major do exército infantil tailandês e por aí fora. Tretas à dúzia que a família Branco engolia embasbacada.
Pobre priminha! ecoaram gémeos & pai, enquanto Nino se levantava. Vou dormir. E lá foi.
Vexada pelo desinteresse do gordo, a bela Ala não pôde impedir-se de ficar logo apaixonada por ele, provocando na vivenda 1 fulminante ataque de ciúmes que até fez cair a pintura toda do tecto.

Alface ~ Avó não pise o cocó


ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker|FBA
Fenda das raparigas, 10
Fenda, 2000
[2000 ex]


Enquanto isso, Nino estava fechado no seu quartito a escrever uma carta d'amor.
Não há mal (a sério que não) fecharmo-nos a sete chaves para depositar as nossas vidas numa folha de papel, embora se conheça quem prefira burilá-las em público para que o bafo da multidão aqueça as palavras esbracejantes.
Estava longe de ser a primeira carta d'amor que o rapazote encetava. Precocemente afectivo e dotado de temperamento ao qual nem repugna chamar ultra-romântico, o miúdo não consentia que os dias passassem sem lhe dar pró sentimento.
Mil folhas havia enchido só no último mês, em sua caligrafia aplicada mas incandescente, e as felizes destinatárias da prosa ruborizavam-se ainda o carteiro vinha a virar a esquina, na expectativa jamais defraudada do adjectivo galante, do substantivo certeiro, do bláblá profundo e hipnótico daquele enigmático correspondente.
A quem sairia o fedelho em tão ímpar quanto enciclopédico (digamos CD-Rómico) conhecimento da insondável natureza feminina?
Vá lá um mortal saber! E ademais, não sabemos nós já (Cf. Um Pai Porreiro...) que Nino saíra realmente filho de pais incógnitos, abandonado que fora neste nosso mundo-cano dentro de um recipiente sanitário a que vulgarmente chamamos caixote de lixo?

Alface ~ Filhos assim dão cabo de mim


ilustração de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker
col. fenda das raparigas, 7
Fenda, 1999
[2000 ex]



Os Branco tinham de antemão alugado as duas únicas suîtes, a Suîte Esmeralda e a Suîte Topázio. Por três meses. Pagando tudo adiantado. Uma fortuna, mas pronto.
Lá chegados, baixaram gelosias, desligaram telefones, faxes, TVs, CDs, computadores, slot-machines, os tanques de hidromassagem e colchões eléctricos, desenroscaram as lâmpadas, neutralizaram ares condicionados, aquecedores e arrefecedores, espetaram cá fora uns estanques letreiros DO NOT DISTURB e aferrolharam-se nas camitas.
Ansiando alguma paz, respeito, etc. Pode ser? Please?
Deixem que avise desde já:
até os melhores hoteis, com seus panoramas de mar quietinho, discretos, seus pinheiros convencidos e jacarandás, com campos de ténis insonorizados e campos de golfe domesticados, de lojas vorazes e salões racés e clientes atentos e abrigados, até os melhores pardeeiros hoteleiros têm pessoal.
Que ronca, toca, bate e arranha às portas, que deseja e pretende e quer entrar e limpar e servir.

Alface ~ Uma mãe porreira é prá vida inteira


ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker
Fenda das raparigas, 3
1ªed, Fenda, 1998
1ªed, Fenda, 1999
1ªed, Fenda , 2001
[1000 ex]


A vida corria-lhes sem nada de especial a assinalar, os gémeos governando a casa e o pai mudando pendularmente de emprego. É sabido que tinha grande dificuldade em aquecer qualquer lugar que aparecesse. Não por inadaptação, indolência ou arestas de carácter, mas por ser incapaz de controlar a respectiva estatura. Dando azo (argumentavam os patrões) à risota desenfreada dos colegas. E a produtividade ressentia-se, diziam-lhe (com uma palmadinha nas costas).
O problema só normalizou, mais ou menos, quando o sr. Branco encontrou aquele que viria a ser o seu filho mais novo, Nino. Por mero acaso, num caixote de lixo. O pimpolho ignorava como fora parar ao lixo e também se lhe tinham varrido da memória as noções mínimas de vocabulário. Talvez não fosse, tecnicamente, mudo. Mas lá que não dava uma para a caixa, isso é que não dava.
Só bastante mais tarde, quando Nino começou a mostrar as suas habilidades (transformar-se em todo e qualquer tipo de objecto esférico) é que os irmãos lhe deram o devido valor e ele se pôs a falar.
O pai, pelo contrário, engraçou com o gordinho desde que o viu e ficaram pela vida fora os melhores amigos do mundo. Partilhando, nomeadamente, palpitantes aventuras em busca do sustento para o agregado familiar.
Foi ainda por essa ocasião que deram em mudar de terra em terra, adoptando como programa de acção o lema "parar é morrer".

Alface ~ Um pai porreiro ganha muito dinheiro


ilustrações de Pedro Proença
design de João Bicker
Fenda das raparigas, 2
1ª ed, Fenda 1997
2ª ed, Fenda 1998
3ª ed, Fenda 2001
[1000 ex]


As incursões em busca de fundos só ocorriam, recorde-se, quando o Sr. Branco era despedido e havia que fazer pela vida. Talvez esta circunstância justifique algum prazer punitivo com que tais acções eram encaradas pelo agregado familiar.
Entende-se tal sentimento e perdoa-se, dado que a vida de viúvo não é um mar de rosas.
E tanto assim é, que, no regresso ao lar, se tornavam inevitáveis os abraços de regozijo aos heróis carregados de notas.
Como homem habituado aos revezes da fortuna, o Sr. Branco comprava umas prendas para os vizinhos, abastecia a despensa e o frigorífico, dava uns doces ou brinquedos às crianças e, cheio de esperanças e ilusões, atirava-se à rua novamente atrás de emprego condigno.
Nestes tempos difíceis nem sempre a tarefa era coroada de êxito, mas ele não desistia. Sinceramente acreditava no valor duma educação que preza o suor do rosto como se de sal para o pão se tratasse. Podia passar meses nisso mas não desistia e encaixava recusas com trejeito compreensivo que constituía a sua imagem de marca.
Os miúdos não se ralavam, era a maneira de o pai andar ocupado. Restava-lhes a escola e a lida da casa com fraterno espírito de entre-ajuda, fruindo a rotina como só os verdadeiros aventureiros se atrevem.
Para Nino e para o pai aquele período de tréguas traduzia-se numa benção retemperadora das emoções que provocavam em outras terras e pessoas. Nunca, como em momentos que tais, a tranquila vida da família lhes sabia tão bem. O oásis durava até ao dia em que um felicíssimo Sr. Branco lhes aparecia com novo emprego. Fosse num armazém, nas obras, como estivador de porto, como estafeta, fosse como escriturário ou servente de limpeza, a alegria do pai era sempre genuína e só comparável ao cepticismo dos rapazes, que de antemão conheciam o final da história.
Apesar de previsível, a vida deles admitia excepções. Em rigor, 3 excepções. Todas 3 com o mesmo nome: férias.

António Pocinho ~ Os Mistérios de Casimiro


desenho gráfico de João Bicker
Fenda 2002


O Caminho Marítimo Para as Raparigas

(...)

Há algum tempo que não tenho nenhuma namorada. Não sei se é por causa dos meus ténis não serem de marca ou se é por às vezes me pôr a tirar macacos do nariz. A minha irmã contou-me que as miúdas não gostam de miúdos fedorentos, e eu confesso que às vezes não me apetece tomar banho.
Podia haver uma disciplina na escola para os rapazes aprenderem a arranjar namoradas. Não se davam negativas e havia aulas teóricas só para rapazes, porque as raparigas não precisam. A minha irmã, que é mais velha do que eu, arranja sempre o namorado que quer. Eu acho que vou passar a fazer como o namorado da minha irmã e esperar por uma miúda que saiba aquilo que quer.
Ultimamente, quando tento arranjar uma namorada, ou elas já têm alguém, ou acham que eu sou muito novo. O que acontece é que as miúdas me acham muita piada por calçar peúgas de cores diferentes e por estar sempre a fazer perguntas malucas nas aulas de história. Mas depois, quando as convido para sair à noite ou ir ao cinema , dizem que vão à natação ou que têm um jantar em casa da avó. É claro que não posso ir jantar a casa das suas avós, porque não gosto de pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, mas passei a frequentar a piscina. Às vezes dou um mergulho e apareço-lhes de surpresa à tona de água, o que acaba por ser contraproducente, que é uma palavra que aprendi ontem na aula de educação visual.. Ficam assustadas e chamam-me "estúpido", um nome que as raparigas costumam chamar aos rapazes.

António Pocinho ~ Quanto custa criar uma sardinha


ilustrações de Pedro Proença
capa de João Bicker
Fenda das raparigas, 9
Fenda 1999
[1200 ex]


Mal sabiam do que se tinha passado, os peixes todos iam acorrendo a casa do Tamboril e da Cachucha, manifestando a sua solidariedade e oferecendo a sua ajuda para o que desse e viesse. O primeiro a aparecer foi o Peixe-Aranha. Como todos sabem, o Peixe-Aranha (aquele peixe em que, às vezes, os humanos se picam, na praia) não é comestível e, portanto, não tem qualquer preço no mercado. Por causa disso, o Tamboril tinha-lhe um grande desprezo, maior ainda do que aos peixes mais baratos, como o Carapau. O facto de o Peixe-Aranha ter sido o primeiro a aparecer deixou o Tamboril muito comovido. Abraçou-se logo a ele e até chorou. As lágrimas dos peixes não são líquidas, são gasosas. São pequenas bolhas de ar que se soltam dos olhos.
- Ó meu amigo, e eu que não lhe dava valor nenhum. De facto, o nosso preço não é aquele que nos dão no mercado. É o nosso carácter. E você demonstrou hoje que devia valer pelo menos 9 995$00 o quilo. Você é o peie mais caro que encontrei até hoje.
- O que lá vai, lá vai. O que é preciso é trazer de volta as suas sardinhas.
Logo a seguir, chegou o Carapau e então aí é que o Tamboril já não sabia o que é que havia de fazer com tanta emoção. Não parava de se desculpar:
- E eu que não vos tinha em bom preço. Vocês hoje estão a dar-me uma grande lição. Isto é uma autêntica revolução nos preços. Vejam lá se o Linguado, um peixe de 3 865$00 o quilo, aparece por aí! Não aparece...
Valia mais que o Tamboril estivesse calado porque o Linguado apareceu mesmo. E não só o Linguado... o Salmonete, a Solha, o Chicharro, a malta do Clube dos Cabeçudos, o Polvo, a Moreia, o Choco, a Faneca e o Faneco, a Lula, uma delegação da Academia das Ciências que não parava de dizer disparates, enfim, já não havia lugar para sentar tanta gente. Não fosse estarem todos ali reunidos por uma infelicidade, aquilo até parecia uma festa. E era de facto uma festa que todos esperavam quando as sardinhas voltassem.

João Rosas ~ Qualquer pessoa dá um homicida qualquer


ilustrações de Pedro Proença
capa de João Bicker
1ª ed, Fenda 1996
2ª ed, Fenda 1997
3ª ed, Fenda 1997
[2000 ex]


Tenho uma má notícia: adormeci a meio da festa. Quando nós chegámos, os rapazes ficaram todos lixados, inveja. Mas as gajas, não; tiveram uma reação que eu apreciei bastante; disseram logo: - Olha o Sandro! Olha o Sandro! - falavam baixo, mas eu sou como o K.I.T.T., o que quero ouvir, ouço. Uns minutos depois, o Ivar, cheio de ciúme, veio contar-me que elas tinham dito que eu era um palhaço esfomeado. Claro que não acreditei. O momento alto da noite passou-se antes de eu adormecer. Tudo aconteceu quando eu pedi para porem um disco do meu pai. Não sei porquê, mas recusaram. Como fiquei frustrado, fui comer. Dirigi-me com pés de lã à cozinha. Abri o frigorífico, e o paraíso da comida deparou-se à minha frente (ouvi esta frase num filme). Foi então que o mais belo ser humano à face da Terra (outra dos filmes), a Luísa, apareceu. O cabelo esvoaçava, as narinas abriam-se e fechavam-se; chamam-lhe BNT (bimba de nariz torto), mas ela não é bimba, e o nariz é a parte mais atraente do seu corpo. - Sai do frigorífico, meu grand'animal. És um palhaço nojento. Foi o meu record pessoal, em termos de manter uma conversa com a gata, 10 segundos. Foi um espectáculo. Mal cheguei a casa, fui ao forno, porque a minha mãe me tinha guardado um bocado de perna de borrego. Ela é a melhor mãe do mundo. O Porto joga hoje com o Leça (recém-chegado à primeira divisão). Vou começar a tomar banho duas vezes por semana, pois o meu pai disse que eu já estava a ficar um homenzinho e começava a cheirar mal. A partir de amanhã, vou fazer sempre uns exercícios antes de me deitar: 10 abdominais e 10 flexões.
Vi o Tenho Dois Amores com o Marco Paulo enquanto comia uma bolachas de chocolate que estavam escondidas no armário.

Patrícia Portela ~ Operação Cardume Rosa


texto e ilustrações de Patrícia Portela
editado para o Teatro O Resto
desenho gráfico de João Bicker
Fenda 1998


Nossa Senhora do Cagaço - a própria, gentilmente cedida para uma série de "aparições"

Boa noite, chamo-me Maria, muito prazer.
Hoje deixei-me dormir, perdi o comboio para a procissão e achei que era um bom dia para me confessar.

Fumo, fumo sim senhor e travo, fumo bem.
Nunca fiz jejum na Páscoa, adoro enchidos e bebo licorzinhos; ando descalça mas não me ajoelho assim com tanta frequência, praguejo, praguejo sim senhor, adormeço na hora do terço, vou a Fátima de autocarro, nunca a pé, não conheço Santiago de Compostela, adoro vermelho, adoro toucinho do céu e sou uma voyer... a minha alcunha é Nossa Sra. do Cagaço, porque há muito que vivo cheia de medo que descubram a verdade.

Hoje queimei o almoço, perdi as chaves de casa no metro e achei que era um bom dia para me queixar.

2000 anos, 2000 anos...
Faz hoje 2000 anos que tive um caso com Gepetto, o carpinteiro. Dei à luz um boneco de madeira sem nariz.
Ai Gepetto, Gepetto, furaste-me o coração pelas costas e desde então só amo com corrente de ar... Fizeste-me mal Gepetto e por tua causa passei a vida a mentir... desapareceste-me assim, sem mais... Dizer ao meu filho este tempo todo que o pai era uma pomba...

(suspira) 2000 anos, 2000 anos... quanto tempo dura ausência...
Por tua causa chamaram-me de tudo... até de mala...
Foste-te embora sem adeus e deixaste-me virgem de 7 meses na aldeia.
Fui um sucesso... gravuras, baixos-relevos, medalhinhas, posters, postais, figurinhas de barro e de madeira, até pratos... Tanta história se fez à minha volta...

Klaus Wagenbach ~ A Praga de Franz Kafka


"um livro de leitura e viagem"
tradução de Lumir Nahodil
capa de João Bicker/FBA
Fenda, 2001


O casamento e a fundação do negócio dos pais coincidiram no tempo (1882) e no local: na mesma casa do lado norte da Praça da Cidade Velha onde foram celebradas as bodas (Hotel Goldhammer), Hermann Kafka fundou o seu comércio de galantaria, de início em regime de venda a retalho e como 'loja de rua'. Dessa casa só chegou até nós um quadro (v.p.74). Logo em 1887 a loja mudou-se para um local da vizinhança igualmente vantajoso, a casa dos Reis Magos, onde se manteve até 1906. Era portanto ali que o filho podia assistir às saídas do pai, muito antes de a famíla também viver nessa casa:

A loja. Em princípio, ela deveria ter-me dado alegria, especialmente na minha infância, enquanto foi um negócio de rua. Era tão viva, iluminada à noite, viam-se e ouviam-se tantas coisas, podia-se ajudar com aplicação nisto e naquilo, mas sobretudo admirar-te pelos teus magníficos talentos comerciais... No entanto ouvia-te gritar, ralhar e bramir de tal modo que, segundo a minha opinião daquele tempo, não havia no mundo inteiro nada de semelhante. E não te limitavas a ralhar, mostravas ainda outras formas de tirania. Quando, por exemplo, varrias do balcão, com um gesto brusco, mercadorias que não querias que se confundissem com outras... Ou aquela frase que não te cansavas de repetir, relativamente a um caixeiro doente dos pulmões: 'Que estique o pernil, esse cão doente'. Dizias que os teus empregados eram os teus 'inimigos pagos', e eram isso mesmo, mas antes ainda de se o terem tornado, tu parecias ser inimigo deles, o 'inimigo pagante'.

J. -B. Pontalis ~ Entre o sonho e a dor


tradução de Miguel Serras Pereira
capa de João Bicker/FBA
Fenda, 2001


Freud, numa das primeiras definições que deu do recalcamento, achou possível dizer dele que era uma «falha de tradução». Que diremos, assim, da própria tradução necessariamente em falha, a não ser que se arrisca sempre a instalar um acréscimo de recalcamento? Pior ainda: um duplo recalcamento, o da língua materna do autor e, igualmente, da do tradutor.
Todo o tradutor está consciente do risco, ou devia estar.Oscila sempre entre um «traduzir demais», marcado pela preocupação da legibilidade e do correctamente dito, e um «traduzir de menos», colocado sob o signo da literalidade, da fidelidade absoluta ao texto original. No primeiro caso, entende submeter-se apenas às exigências da sua própria língua, ou até do seu próprio estilo; no segundo, quer obedecer apenas à língua e ao estilo do autor. Transpor ou decalcar? De facto, seja qual for a opção assumida, o tradutor é o agente de um dito de outra maneira: o próprio copista, que pretende apagar a sua intervenção, deforma. Afinal de contas, porque seria o tradutor o único a escapar às astúcias do inconsciente? Mas é difícil admitirmos que a operação de traduzir se dê sem perda, ou seja, castração. Para consentirmos na perda, precisamos de prever que dela algum ganho possa resultar.

Eileen MacDonald ~ Matem as Mulheres Primeiro


tradução de Pedro Serras Pereira
capa de Secretonix
Fenda, 2000


Pouco passa da meia-noite e a mulher de preto lá está outra vez, ali sozinha nos arrebaldes da cidade. Assim que começa a apedrejar o jipe dos militares, irrompem focos luminosos no escuro do céu e ouve-se o aviso do fogo de artilharia. A mulher desaparece. Passados dez minutos, quando tudo voltara à escuridão, reaparece e as pedras voltam a voar. Continua nisto durante duas horas. É a segunda noite que faz a sua demonstração solitária. Ninguém na cidade sabe quem ela é nem donde vem.

O céu azul parece estar repleto de objectos voadores - pedras e calhaus, uns catapultados por um perito com onze anos, outros debilmente arremessados por um pequeno titubeante. São lançados pneus em chamas, libertando um fumo acre que queima os olhos e o nariz. Os soldados retaliam com uma rajada de tiros e uma bomba de gás lacrimogénio. Toda a gente foge, mas um miúdo, com cerca de dez anos, é apanhado. Solta um grito lancinante quando um soldado lhe inflinge um violento golpe com um bastão de madeira, apanhando-lhe as costas e as pernas. Um bando de mulheres aparecidas sabe-se lá de onde, corre como as «Fúrias» na direcção do soldado que agarra o miúdo. Vendo-se cercado, o soldado, assustado, pára de bater no rapaz. Tenta repelir as mulheres que gritam todas elas pelo seu filho. No meio da confusão, uma delas arrebata-o e foge com ele dali para fora.

Ouvem-se tiros e berros no acampamento - os soldados estão aí. A mãe dá um pontapé no filho de oito anos, sentando-se absorta nas palavras que a irmã troca com o intérprete. O rapaz levanta-se de um pulo, corando, e desata a correr lá para fora. O intérprete explica: «Ela disse:'não tens vergonha? Vai lutar com os teus irmãos e irmãs'.»

Isto é a Intifada, a insurreição dos palestinianos, desde 1987, contra a invasão militar israelita do West Bank e da faixa de Gaza. Desculpar-se-á o facto de as pedras e os bocados de rocha, que constituem o grosso do arsenal dos guerrilheiros, não poderem ser classificados propriamente como armas de terror - especialmente quando se enfrenta um exército treinado e bem armado. As autoridades israelitas, porém, decretaram que qualquer pessoa que atire uma pedra a um soldado israelita está a ameaçar a segurança do Estado.

José Madeira ~ Camões Contra a Expansão e o Império


capa de Secretorix
Fenda, 2000


O que significa a mitologia é que os portugueses, que se dizem cristãos, pela sua acção se revelam pagãos e, como tal, toda a sua «gesta» fica deste modo condenada. Ao denunciar como falsa a mitologia, condena-se igualmente essa «gesta», constituindo esta denúncia um dos mais virulentos e significativos (porque estrutural) elementos da crítica à empresa narrada. O «hibridismo» a que nos temos vindo a referir, tema paralelo da confusão dos cultos, que trataremos em breve, explicita precisamente a obnubilação das consciências, a confusão que faz tomar por cristão o que não passa de idolatria, uma idolatria reiterada em toda a história de Portugal e da Europa. Mas vamos às provas.
A tese apontada há pouco, pela sua novidade e aparente contradição com todas as interpretações até ao momento produzidas, decerto exige uma demonstração mais detalhada. A sua justeza ficará, quanto a nós, convenientemente comprovada se se conseguir encontrar noutras partes da própria Obra de Camões expressão inequívoca do seu conteúdo, incluindo, obviamente, também Os Lusíadas. Começamos pela Lírica, pela simples razão de que foi por essa ordem que a investigação se desenvolveu. Igualmente esclarecedora será a perspectiva da mitologia ao nível dos antecedentes - tantas vezes invocados a título de «influências» - fornecidos pela tradição clássica, incluindo Platão, cristã, representada por Santo Agostinho, e humanista, com uma brave referência a Erasmo. O objectivo será mostrar que, também desse ponto de vista, a nossa tese sai reforçada, pois a atitude que atribuímos ao Poeta se harmoniza perfeitamente com uma tal tradição.

Eduardo Dâmaso ~ A Invasão Spinolista


capa de João Bicker
sobre pormenor de fotografia de Alfredo Cunha
Fenda, 1999
[2000 ex]


Porque a história, seja ela qual for, grande ou pequena, de um homem ou de um país, não deixa de ser a expressão de uma luta da memória contra o esquecimento, é importante contá-la. É a melhor maneira de preservar os traços caracterizadores da identidade de um povo. Contar as suas histórias é o instrumento ideal de combate a um atávico sonambulismo que marca a relação dos Portugueses com a história contemporânea de Portugal, um país onde a criação, seja ela literária, cinematográfica ou o próprio jornalismo, quase só esporadicamente se aventura nos meandros do passado.
Mas a essa espécie de alheamento colectivo também não é indiferente o manto de silêncio que envolve alguns dos episódios mais marcantes da vida nacional, depois da revolução de 1974. Há testemunhos que não se recolheram nem se sabe se alguma vez será possível obtê-los. Quantos anos terão de passar ainda para que as estórias da história se possam contar de alma limpa e aberta ao futuro? Quantos anos terão de passar para que os mistérios que permanecem sofram a natural erosão do tempo? Que país é este que deixa os pedaços dessa história ao sabor de cobiças ou temores privados, consentindo que os melhores repositórios e tempos que merecem uma catarse colectiva ou uma expiação de complexos de potência colonial - ou nem uma coisa nem outra, tão-só ser contados às gerações vindouras - sejam inutilmente perdidos ou devassados sem critério?

em 2006 era assim

Edgar Prestage ~ D. Francisco Manuel de Mello ~ Esboço Biographico


capa de João Bicker
Fenda, 1996
[50 ex numerados de F01 a F50 +
450 ex numerados de 1 a 450]


Foi nos fins de 1637 que o povo da capital alemtejana se insurgiu contra as auctoridades, saqueando os cartorios, queimando os livros reaes que servião de registro aos direitos publicos, e libertando os presos da cadeia. Na apparencia os nobres fizeram o possivel para acalmar os animos, mas muitos entendião-se secretamente com os cabeças do motim, e assim como os Jesuitas, que erão altamente respeitados na cidade, «tacitamente contribuião ás esperanças de alguma novidade», na phase caracteristica do nosso auctor, ao passo que os Dominicanos abertamente favorecião a causa popular. Segundo a observação dos adeptos do Sebastianismo, erão por aquelle tempo chegados muitos dos signaes que havião de anteceder a libertação de Portugal do jugo estrangeiro.
Recebida a nova em Madrid, foi julgada sem importancia, mas os de Evora, gloriando-se das suas acções, começavão a entender-se com os povos vizinhos, e estabeleceu-se uma Junta revolucionaria, que governava debaixo do nome e auctoridade d'um doudo e «dizedor», o Manuelinho. Em pouco tempo o movimento tinha alastrado pelo Alemtejo, e em Villa Viçosa levantavão-se vozes que acclamavão o Duque de Bragança como Rei. Este, não julgando o momento azado (e teve razão) tratou de reprimir estas demonstrações inconvenientes, e estando impossibilitado por doença, fez sahir de noite pelas ruas o Duque de Barcellos, D. Theodosio, então da idade de tres anos, a fim de serenar os animos populares, o que conseguiu. Procurava a Princeza Regente Margarida atalhar a sedição, mandando varios emissarios a Evora, mas sem resultado, e perdidas as esperanças de abafa-la com meios suaves, tanto em Madrid como em Lisboa se foi introduzindo a pratica do castigo. Comtudo luctava-se com difficuldades grandes, porque o poder de armas em Portugal era pouco, e com esta certeza, crescia o numero e soberba dos inquietos.

António Cabrita ~ Arte Negra


colecção Fenda Luminosa, 16
dirigida por Vasco Santos
Fenda, 2000
[1100 ex]


I beg your pardon!
Passeios em Dante

1

A meio do Arquimarché, entre PêCês e Cêdês
Rom's - um rosto lacunar e prateado pelas quatro
línguas do garfo, sob o braço - pareceu ao poeta

que o poema o trepanava. Ia o sobredito leve
de sobrolhos, a tarde engatilhada em quatro taças
de verde e soube de repente que dentro em si

ainda abalos vários campeavam: «o sentido
é o lobo da palavra: faça-se a batida!»
Houvera um Virgilio-da-Guarda pelo desfolhar

das mãos ou por florestas de maçanetas e chips,
um sonho derradeiro que desferisse razões.
Mas a fé, a extrema fé, só gerara cucus e pensões

e na ala de graxas e sapatos, provido de polaróide,
afrontava agora a fera oval - o seu passado
de extravios que algemou ao menor dos círculos

todo o firmamento - e descobria-se tão iludido
como encurtado por um surto de facturas:
«O sentido é o lobo da palavra: faça-se a batida!»

Urgia ao poeta uma tesoura de poda.
A palavra já mergulhava no tinteiro o nervo exposto
incendiava por conta própria o medo o sabugo

e o nado-anjo. A palavra que emala ilhas
águas intermédias e cumula insónias, à luz
mais débil, fazendo regurgitar maremotos

e a estricnina, ria-se sem dó das suas últimas
conquistas: impostos sem atrasos, idas ao cinema
uma por outra travessia das fronteiras.

Até ao balcão dos queijos nada o sossegou.
E pior ainda entre laxantes, pranchas de surf
legumes e apalpa-folgas - o poeta já se via

esborratado na ardósia, à chuva e sem acinte,
à mercê das matizes mais avulsas e dos «amigos»
invisíveis que em perigos o mar excedem

e fazem dobrar todas as línguas.
Cismando na renúncia o vate suplicava
o arraso das gavinhas: à tona e sem remorso.

Mas abriam-se as cortinas ao amealhar
da sílaba, a cifra estreitava-lhe os pulmões:
«...o lobo da palavra - faça-se a batida!».

(...)

João Camilo ~ para a desconhecida


capa de Sem OI
colecção As Lágrimas de Eros, 9
Fenda, 1983
[1500 ex, 200 dos quais fora de mercado]


As crinas do vento

O vento: música ou murmúrio da árvore.
Encosta a obsessão à parede branca dos quintais.
Vento de mar? E jovem leva a nuvem.
Os sinos de bronze, o cimo das serras:
viver é brusco, tão incerto.
E a minha mão, desabituada de sentir que toca
e é gesto
e me deixa possuir,
a minha mão quer a janela aberta. O vento não tem,
não, não tem
crinas.
Nem as costas luzidias de cavalo ou égua.
Áspero,
vidro partido espetado na terra.
Os dentes de uma serra,
espaço de repouso e cume que agride.
Pôr a mão em tanto
e sem respirar
quando parecia que era tarde e apenas
hora de dormir?

António Pedro Pita ~ Está pronta a paisagem


as lágrimas de eros 8
capa de Todas Manas


Percorro o vidro
uma ausente transparência
o frio
o gume do sangue

Percorro o frio
uma opacidade ténue ingrata
um raro rosto de água e rápido
meu e de vidro

Percorro a transparência
o frio
Fica uma leve impressão
digital
um sulco que (se) desfaz perto do silêncio

Carmo Sousa Lima ~ Paisagem branca


capa de João Bicker
Fenda 1997
[500 ex]


.................................................................ao Jordi Savall
.............................................enquanto tocava Thobias Hume


os dedos da voz
rolam
em marés

o som
respira
pelo oval da sombra

pássaros
cegos de espaço
pairam
numa abóbada de silêncio

Viola da gamba
terno terno
Dragão

Pravda 3


direcção e organização de Júlio Henriques e Vasco Santos
colaborador neste número: João Damasceno
capa de Zepe
Fenda, 1985


Por obra e graça da Rainha Santa,
nossa padroeira e altíssima protectora,
foi este terceiro número de Pravda terminado
no santíssimo mês de Outubro, do ano de 1985,
em Coimbra, na Tipografia do Outro Mundo.
A capa foi manufacturada pela oficina Am/Produções
Serigráficas da Reboleira.
DEO GRATIAS.

[o colófone]

Fenda ~ Almanaque Topogáfico 4


Fenda, 2001
[2000 ex]


Vou agora contar-lhes como nasci, como cresci e como surgiram em mim as primeiras marcas do génio. Nasci duas vezes. Vejamos como isso aconteceu.
Meu pai casou com minha mãe em 1902. Os meus pais, no entanto, só me deitaram ao mundo em finais de 1905, porque o meu pai desejava que o filho dele nascesse exactamente no Ano Novo. Como tinha calculado que a concepção deveria ocorrer no dia 1 de Abril, só nesse dia abordou a minha mãe para lhe dizer que concebessem um filho.
O meu pai deu esses primeiros passos junto de minha mãe a 1 de Abril de 1903. Minha mãe, que há muito aguardava esse momento, ficou muitíssimo contente. Mas tudo indica que meu pai estava de humor brincalhão, porque não conseguiu conter-se e disse a minha mãe: «Hoje é Dia das Mentiras!».
Minha mãe ficou terrivelmente ofendida e nesse dia não voltou a deixar que ele se aproximasse dela. Foi preciso esperar pelo ano seguinte.
(...)

[excerto de «Como eu nasci» de Daniil Kharms]

Fenda ~ Almanaque Topográfico 3


Fenda, 2000
[2000 ex]


Sob o alto patrocínio do bacalhau escrevi este livro.
A partir de hoje, em homenagem à Amália Rodrigues, vou-me vestir de bacalhau.
É pena vocês não poderem apreciar, mas já comecei a pôr em prática este meu propósito. O colete, inteiramente em bacalhau, que hoje devia usar aqui, foi-me roubado esta manhã quando o dependurei à entrada duma retrete pública da Graça. Só ficaram no chão as presilhas em metal. Estas.
Paciência. Paciência também para o meu pai, que teve um trabalhão enorme para fazer um tão magnífico colete. Isto prova que há gente neste país que não perde o norte. Mas não pensem que as minhas teimosias e homenagens acabaram aqui.
Soube pela minha amiga e amante norueguesa Elisabeth Hessen que uns lapões de Kirkenes, senhores de três rebanhos de renas, são especialistas nesta matéria.
Onde eles vivem é muito para lá das ilhas Lofoten, no país dos fiordes, não muito longe da fronteira russa. Em pleno Ártico, com temperaturas inferiores a 42 graus e com invernos onde durante dois meses não se vê a mínima luz do dia. Onde os vizinhos, com o peso da neve e do silêncio, são potenciais assassinos ou nos ignoram totalmente. Mas nos sonhos mais íntimos, cheios de espinhos náufragos, eles por vezes tentam a emboscada. É pois em tais paragens que os Friedriksen vivem.
Já lhes encomendei um chapéu de bacalhau.
Já lhes pedi para me fazerem para o ano que vem uma camisa e um casaco de bacalhau.
Só espero a vossa compreensão para o ano que vem.
Se me toparem na rua todo vestido de bacalhau, não virem a cara como se não me conhecessem.
Não desatem a rir às gargalhadas.
Não me chamem doido ou extravagante.
Porque eu continuo a ser humano.
Embora me tenha des-pendurado.
Também peço aos mais pobres e aos mais impacientes que não me metam logo de molho.
Deixem-me respirar um bocadinho. Antes de me mergulharem em água fria.

[texto lido pelo autor, na apresentação do seu livro Adeusamália, na Livraria Ler Devagar, em Lisboa, Dezembro de 1999]

Fenda ~ Almanaque Topográfico 1


Fenda, 1999
[2000 ex]


A dividida música do pensamento

escreve o nó desdobrado
até ao infinito, atravessando
olhos nulos
em brasa,

o grito
fincado em cima
supende-se, com a duna
finalmente situada,
para ele se arremessa, no novo,
consulta-o, de uma vez
por todas, cercado
por um fervor que galga,

a queimadura
ébria
do sinal de Caim na neve do bosque
jorrando a meia-voz a martelar na neve,
de súbito alumiada, es-
quadrilhada pelos sinos insistentes,
atrás do sabugueiro
sonolenta adormece.

O outro caminho dividido
alimenta a fonte
vaporosa.


[poema de Paul Celan, dedicado a Henry Michaux, traduzido por JG Ostermeyer e Júlio Henriques]

Manuel Silva ~ O céu é o deserto


fotografia da capa de Jorge Ferreira
Fenda 1983
[250 ex]


a face inteira do universo está no espelho
donde a linha desce e a teia se desdobra e
seu puro centro é senti-lo. Senti-lo e voltar
a tecer a linha geométrica à volta da folha
e nela os olhos arderem de tanta luz. E
cegos recolher os inomináveis momentos na
gaveta lá deixarmos os olhos voltarmo-nos e
vermos as paredes do espelho paredes do mundo
acenar acenar

Artur Rockzane ~ Cavalos, Heróis e Lunáticos


capa de Todas Manas
Fenda, 1983
[600 ex]


Idiota

Está a falar-vos o idiota
que descobriu o segrêdo dos lemingos
e foi ler Tzara para os templos de Angkor

Já me cansei dos relatos,
formais,
dos vadios de Tânger
(a loucura não é uma instituição)

A minha febre agora estala
as paredes da cidade,
os heróis cansaram-se de o ser.
O medo
continua a tomar anfetaminas

(Um carro da polícia parou à porta do hotel)

Catrapum!
Fujam rapazes!
...................................- ou não!
É QUE SOMOS FORA-DA-LEI!
- assumimos um sexo azul e bizarro,
temos substâncias proíbidas nas cuecas
e um túnel cavado até ao delírio.
ASSUMIMOS A NOSSA ESQUIZOFRENIA
sem recorrer à caridade -
somos os terríveis ASSASSINOS DO REAL!

Os chuis começam a subir;
atiro a televisão pela janela,
dispo-me,
rasgo o ventre,
ESTOU LÚCIDO
- «eles»
..................não me podem prender!

Nú no telhado,
A Bárbara está-se nas tintas,
continua a ouvir Eddie Cochrane.
Para quê fugir rapazes?
Somos transparentes
de uma loucura sem rotina,
divinamente idiota,
o olhar húmido apostado na noite,
no perigo.

Não, já nada importa;
o poeta acordou o lagarto.
(uma mosca, japonesa
........passeia-se na janela)
e demência agita a briza
nas árvores, nos cabelos
Já nada importa.

Joëlle Ghazarian ~ Ó de Amoque


tradução de Júlio Henriques
capa de João Bicker sobre ilustração de Hans Bellmer
colecção fósforo 2
Fenda, 1995
[600 ex]


Como mudar de ritmo? Como chegar a isto: não se ser possuído pelo tédio, não mergulhar na sua vastidão? Amoque é virgem; nunca ninguém nela penetrou. Ó é um velho prostituto ainda bastante jovem para ser amante pago. Como o não pode ser com Amoque, a quem o sistema parece tentador mas excessivamente fácil («deitaremos mão a isso se não houver mais nada»), ele procura assim não se tornar homem travestido para mulher homossexual, para cuja pele se lhe afigura que ela o empurra; defende-se do transtorno que em si mora fazendo-o caricatura.
Fingir que não se finge, a fim de que os outros nos possam achar credíveis. Amoque e Ó, todavia, expõem-se a modelar os instrumentos da sua própria anulação; dois autores que se multipliquem em equívocos acabam por chegar ao esgotamento. Porém cientemente se esmeram com vista a livrarem-se , na ideia e no acto, das repetições escusadas, substituindo-as pelos sabores duma curiosidade motriz. Buscam em seu próprio engenho para conseguirem, não aquilo que teriam podido ser, mas o que estão já em condições de devir; prazer e bondade custam isso.

Miguel Martins ~ Cirrose


desenho gráfico de João Bicker
Fenda, 2003
[500 ex]


Haverá sempre uma loira ao dobrar da esquina. Sobretudo depois de perdidas todas as apostas. Conto ter razão. Não chegar a velho. Sempre contei. E não me tenho dado mal. A loira paga as favas e as contas. Andamos bem por uns tempos. Até me reerguer à altura da próxima aposta. Depois, regressa à esquina. Esse cruel limbo do amor. Que é o lugar dela desde que Deus lançou a semente do primeiro apostador. O primeiro que nunca considerou outra hipótese senão ser milionário ou morrer numa valeta. O tudo ou nada. E aprendeu a atropelar e ser atropelado. A descansar dentro dos pesadelos. Como num casulo. O casulo da consciência. Da realidade que nasce de passarmos demasiado tempo virados para dentro de nós. Como uma fera autofágica. Porque nos consumimos mais que a qualquer outro. A eles, à loira, por exemplo, horrorizamo-los à visão das nossas entranhas. A nós próprios consumimo-nos a carne a os miolos. E raramente acabamos por cima.

Roland Topor ~ A Cozinha Canibal


texto e desenhos de Roland Topor
tradução de Ernesto Sampaio
capa de Mario Feliciano/Secretonix
Fenda, 2000


Míope ao gratin

O míope assemelha-se ao presbíope, só que tem os olhos maiores e uma risca ao meio. É preciso tirar-lhe os óculos para que possa cair no gratin. Prepara-se como o badejo.

(...)

Agente de seguros em sua apólice

Extraiam as miudezas ao vosso agente e, se for necessário, façam-lhe um pequeno corte debaixo da cabeça para que não fique nada la dentro. Limpem-no bem, esfreguem-no suavemente a fim de lhe poupar a pele, lavem-no até estar apresentável. Em seguida, ponham-no a cozer a lume brando. Se o agente for gordo, são precisas quatro horas de cozedura; se não, três horas chegam.
Para servir, disponham uma apólice de seguros sobre uma travessa comprida, enfeitem com moedas, cartões de identidade, flores, e acompanhem o agente com um longo assobio de admiração, que não lhe aquece nem arrefece, mas que vos fará sentir bem.

Arquiduque Alexis Von Gribskoff ~ O Doge


(capa da 2ª ed, revista e aumentada)
desenho gráfico de Mário Feliciano
colecção Fenda Luminosa
Fenda, 1998
[1100 ex, dos quais, 200 numerados e assinados pelo autor]


Estive ao cuidado de um religioso disfarçado. Ostentava com relativa elegância um cinto com punhal; no seu chapéu li uma inscrição gótica, impensável num homem de oração e agora de aparência devassa.
Tinha mãos secas e ágeis e às vezes deixava escapar um pouco do seu segredo. Cheguei a surpreender os seus gestos sacerdotais e vi então com toda a clareza a arabesca finura da sua elevação litúrgica. Entoava o Cântico dos Cânticos e a curva do seu olhar lembrava-me a imagem do meu santo da Boémia.
Sei que passeava com uma eslava burguesa e alta, com quem discutia a origem dos morangos.
Fui com ele até muito longe. Era um dia de sol e a sua leve inscrição ocultava algo de sinistro. Disse-me afinal:
«Eu sei que não somos todos iguais».
Pegou-me na mão e continuou a caminhar. Estivemos durante muito tempo a ouvir o silêncio amigo das coisas. Passaram quatro dias.
De vez em quando dava-me morangos, que eu sabia provenientes da mulher que ele amava e de quem começava a ter saudades.
Na tarde do quarto dia o seu silêncio tomou dimensões mais estranhas e a sua figura alterou-se muitíssimo. Julguei que teria escolhido o momento para me revelar o seu segredo. Mas era ainda muito cedo.

Jorge Henrique Bastos ~ A Idade do Sol


capa de João Bicker
Fenda, 1998
[600 ex]


Um seixo

Porque repousa em ti
a grafia marítima das noites,
agrilhoas o músculo das areias insondáveis
e luzes revoltas do abismo fundo
dançam ocultas no teu corpo.

Naufrágios e prodígios,
e vertigem helénica e o olhar dos suicidas
gravaram em ti
o aceirado canto que concentras,
túmulo da mitológica palavra.

Sabes agora quanto vale um seixo:
ele guarda a fúria das marés.

Inabalável
sobre a madeira
renuncias o destino
a escandir outras tormentas.

Com peixes na constelação do sexo

...........inundas-me

Gustavo Sumpta ~ Escola de Cortadores


desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda 1998
[550 ex]


Sucesso

O Homem, no limite, só atinge a integridade na passagem à loucura, ao suicídio. Quando a contradição se torna insustentável, rebenta.
Sucesso sempre se associara aos fenómenos colectivos e às palavras arrebatamento e garfo, que sintetizavam o seu universo estático emocional. Já não acreditava no mercado da arte, odiava comboios.
Sucesso sabia que o destino, o seu destino, era rebentar. Obstinado, encontra a mais valia, salda todas as suas dívidas. Procurou o primeiro comboio cultural, comprou um bilhete de segunda, e estendeu-se ao comprido, entre os dentes e a locomotiva.
Uma falha humana fez com que o seu corpo, as duas metades em que ficara, fossem transferidas para hospitais diferentes.

Gil de Carvalho ~ Tarantela & Viagens


capa de João Bicker
Fenda, 1998
[600 ex]


Na Serra Algarvia

Cadências explodem preste
De seis e oito
A manhã.
Tardios invasores deste Verão,
Para quem o travejamento - se bem
Que de canas, sobrepostas (quanta
Fumarada no ar), é uma diversão mais.

Importa aceitar as coxas tão lisas
Da rapariguinha fazendo inocente
Uma oferenda, típica do extremo
Sul, já africana.

Uma lata faz vibrar o pequeno
Cântico, mas longe. São recipientes
Que deixam sair a mão, cinzento fresco,
Mesmo uma oração - artesanal.

A ganhar quadrados de tectos mais baixos
Vedados p'la atracção recíproca:
A altura, os costumes, a idade - nora
E alcaçuz. A fábrica de alfarroba.
Fútil, um bupreste.

Quem me dera entrar.

Jean-Philippe Toussaint ~ O Banho


tradução de Luís Nogueira
capa de João Bicker
Fenda, 1990
[1000 ex]

9) Eu envergava roupas simples. Calças de tecido bege, camisa azul e uma gravata lisa. Os tecidos favoreciam tanto o meu corpo que quando estava completamente vestido, parecia dirme e poderosamente musculado. Estava deitado, descontraído com os olhos fechados. Pensava na dama de branco, a sobremesa, uma bola de sorvete de baunilha sobre a qual se estende uma camada de chocolate a ferver. Há semanas que reflectia sobre isso. Sob o ponto de vista científico (não sou guloso), via nessa mistura um indício de perfeição. Um Mondrian. O chocolate untuoso sobre a baunilha gelada, o quente e o frio, a consistência e a fluidez. Desiquilíbrio e rigor; exactidão. O frango, pese embora toda a ternura que lhe voto, não sofre comparação. Não. E estava já a cair no sono quando Edmondsson entrou na casa de banho, rodopiou e estendeu-me duas cartas. Uma delas vinha da Embaixada da Áustria. Abri-a com um pente. Edmondsson, que lia por detrás do meu ombro, apontou o meu nome no convite. Dado que não conhecia nem austríacos nem diplomatas, disse que provavelmente se tratava de um engano.

Leonel Moura ~ Robotarium


Livro profusamente ilustrado
para documentar projecto realizado
em vários locais de Vila Franca de Xira.
Projecto de Leonel Moura
com Luís Sanchez Carvalho,
Profico, Idmind e Carlos Nogueira
english version de Alexandre Rodrigues
Fenda 2007

O Robotarium X é uma ideia forte com uma produção simples. Criar um espaço fechado, bastante exposto ao sol, no interior do qual possam "viver" um conjunto de robots autónomos. Tomando por modelo o aquário ou o jardim zoológico, tratou-se de construir um espaço similar dedicado à vida artificial. Um zoo para robots portanto.
Para o interior fabricaram-se, de raíz, vários habitantes robóticos dotados da maior autonomia possível. Para a estrutura envolvente concebi uma forma singular, construída em vidro e aço, baseada num dos sólidos de Johnson designado por Bilubirotunda.
(...)
De modo a reforçar a ideia de nova espécie atribuí a cada tipo de robot um nome em latim. Nasceram 14 espécies, num total de 45 indivíduos, assim nomeadas: Acrorhinomorpho, Araneax, Bilurosequor, Bucinaderm, Cerahetero, Cursovigilo, Pendeopseudosaurus, Procedofrons, Protopedis, Reptumpacatus, Robotapondera, Superinflatus, Techmuris e Zoid.

Leonel Moura ~ Anos 70


Anos 70 ~ Séries Fotográficas
Livro editado por ocasião
da exposição de Leonel Moura
na Galeria Visor, Valencia
entre 24 de Outubro
e 28 de Novembro de 1997.
Realizada em colaboração
com a Galeria Quadrado Azul, Porto.
design de João Bicker
Fenda, 1997
[500 ex]

Lugar comum do discurso moderno e contemporâneo sobre a representação do homem e da sua sociedade no século XX, a fotografia revela-se afinal um objecto decepcionante. Desde logo pela generalização da banalidade. Não havendo hoje nenhum recanto da realidade ou das vidas correntes, que não tenha sido reproduzido em múltiplos registos mecânicos e químicos, sem que se perceba a utilidade prática de tais exercícios. A começar pela manifesta incapacidade da revelação fotossensível em produzir realidade e consciência das poses e dos actos. Afinal, uma pessoa, sóbria e lúcida, ao mirar a sua própria imagem fugaz num bocado de papel ou numa reprodução tipográfica, não pode deixar de se sentir afectada pela mais profunda tristeza e melancolia. Na dupla constatação de que perdeu a vida e de que a sua própria existência nada mais é do que um acumular de instantes profundamente irrelevantes.

Lançamento de "Este Frio e Outras Histórias de Amor" de Paola D'Agostino




20-01-2012, às 20h, no Teatro A Barraca-Cinearte
[Largo de Santos, 2 - 1200-808-Lisboa]

O livro será apresentado por Rui Lagartinho. O actor Nilson Muniz lerá excertos da obra. Durante a sessão, decorrerá uma prova de vinho Thyro. Editora: Fenda. Tradução do Italiano: Miguel Serras Pereira

The reports of my death are greatly exaggerated ~ Entrevista a Vasco Santos




Veja-se uma imperdível entrevista a Vasco Santos no blog Tantas Páginas

Miguel Serras Pereira ~ O mar a bordo do último navio


design de João Bicker
Fenda 1998
[600 ex]


Alternativa

...............................................para o Almeida Faria


Achar-te por acaso a meio da tarde
na livraria de esquina de uma rua
onde nunca sonharia que parasses

Conter a tempo o frémito do susto
(não sem deixar porém que o suspeitasses)
até que ao fim de uma hora ou talvez duas

nos levasse à tua cama o mesmo lume
sem sabermos ao certo por que outra arte
de acordarmos dos anos que perdemos

de só quase desastre em já desastre
(espelhos mortos-vivos de nós mesmos
nem casuais sequer nem necessários)

E ensinar-te por fim os tons da caça
(quem sabe se volúpia se esconjuro
da lembrança ao volver-se juramento?)

da flauta com que atraía ao lusco-fusco
ondulando o vagar da tua ausência
a impaciência das corças de passagem

no vento a que te espero enquanto é tempo

Amadeu Baptista ~ As Passagens Secretas


capa de Manuel Rosa
hors-texte de Nelson Rodrigues
colecção styx/2
Fenda 1982
[500 ex]


Querem fazer de nós nomes sem qualquer rosto, pedaços
de múltiplos frios e múltiplas tragédias, mas uma árvore
preenche os espaços que nos separam. A salvação

é um regato nas núvens, o exercício de um gesto, a macia magia
que há nos corpos, está no sonho, irrompe

da manhã.

Acordas, beijas-me. A árvore, o seu poder,

bendita seja.