fenda
...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame
João Camilo ~ O Grande Frémito da Paixão
desenho gráfico de João Bicker
Fenda , 2002
O Poeta subiu pelo andaime acima à procura da palavra.
Palavra que se lhe recusava, que pelas escadas já não poderia, nunca, alcançar. Palavra manhosa, palavra sabida, palavra instruída em todos os livros. Como o poeta, também ele instruído em muitos livros; apesar de tudo em muito menos livros do que a palavra, o que explica este desencontro inicialmente referido,
quando se mencionava que pelo andaime acima o poeta caçava a palavra sem poder alcançá-la.
O andaime é branco, de madeira, por ele o poeta trepa.
Uma vez, na antiguidade, o poeta teve a palavra debaixo da língua. Fora pela manhã, na infância, quando à porta de casa, ao sair, se dirigia para a cidade. Entre a cidade e a porta da casa que habitava o poeta, a erva crescia, livre e certa, pintando terra de verde. E havia árvores, poucas e altas, por ali no caminho. A palavra ficara-lhe dessa vez debaixo da língua e até alcançar a sombra das árvores sobre o caminho lutou o poeta para retirá-la de debaixo da língua e não conseguiu. O poeta meteu a mão na boca e foi então que a palavra se escapou de vez, pois concentrando-se entre a mão e o debaixo da língua o poeta distraíra-se por segundos do que procurava com tanta obcessão.
De outra vez o poeta estava sentado, sem pensar nesse momento na antiguidade nem na infância, com uma rapariga, em cima da cama do seu quarto (dele). Será necessário dizer que continuava a procurar a palavra? Continuava. E a palavra continuava também, manhosa e sabida, a escapar-se-lhe. Tão instruída, a palavra, que vinha às vezes passear-se pelos lábios do poeta, com ares de provocação ofensivos e desagradáveis, quando o sabia distraído de si. Como nessa tarde, quando o poeta estava com a rapariga e por momentos, contra vontade sua, por distração inevitável, esquecera a palavra para pensar apenas no corpo da rapariga em cima da cama. A palavra, atenta, a rebentar de ironia, passeava-se pela sua boca, da sua língua fazia rampa e deslizava, nos seus lábios rebolava-se, era um desafio permanente ao talento do poeta e escapou-se, à procura de refúgio no corpo da rapariga, entre os balõezinhos dos dois seios reclinando o corpo para descansar.
Fernando Pessoa ~ Antinoo
tradução de Luís Nogueira
Fenda, 1988
(...)
Antinoo está morto, morto para sempre,
Está morto para sempre e todos os amores lamentam.
A mesma Vénus, que de Adónis foi amante,
Ao vê-lo redivivo então, e de novo morto agora
Oferece o renovo de seus antigos soluços: que somados sejam
Ao sofrimento de Adriano.
Apolo está triste: o ladrão
Do seu corpo branco arrefeceu para sempre.
Nem pacientes beijos na rosa do mamilo
Sobre o sítio mudo do bater do coração, lhe devolvem
A vida para abrir-lhe os olhos, fazer que sinta a sua
Presença no correr das veias, firme fortaleza do Amor.
Nenhum calor ficou de outras suas calorosas exigências.
Não voltará a ter sob a cabeça as mãos,
Do oferecido corpo que outras mãos imploram.
A chuva cai; ele está deitado como alguém
Que esqueceu todos os gestos do seu amor
E fica deitado à espera do seu cálido regresso.
Mas todas as suas artes e jogos estão agora com a morte.
Nenhum calor pode demover este humano gelo;
Nenhuma chama pode acender estas cinzas de um fogo.
(...)
Martin Andrew Kayman ~ Alguns dos Nossos Melhores Poetas são Fascistas: Uma Introdução a Ezra Pound
(capa da 2ª edição)
colecção Aladino, 2
Fenda, 1984
(1ª edição: Fenda, 1981)
É este sentido amplo de "poetas" ou "artistas" dentro de uma estética democrática que eu quero sublinhar. A primeira coisa que este modelo nos mostra é que os nossos actuais critérios estécticos não são democráticos. Os critérios de que nos servimos para classificar Pound como "bom" ou "grande" são critérios que recusam o modelo de Jones, o qual, sustentando que todos os homens são, de diversos modos, criadores, nada tem a ver com a "excelência". Tais critérios, longe de serem democráticos, são antes determinados por uma concepção hierárquica da arte.
Estarei a afirmar aquilo que é simplesmente óbvio? Bem, se podemos aceitar - ainda que tal me pareça difícil e penoso - que os nossos critérios estéticos não são democráticos, não se justificará ao menos indagar se na realidade eles são "espontâneos"? É evidente que parecem sê-lo, e assim, se continuamos seguros de que o são, significará isso que nós somos "espontaneamente" não democráticos? E quando eles não são vistos como espontâneos, mas sim determinados, em que ficamos... com este prazer irresistível?
O que podemos dizer é que na medida em que temos uma concepção hierárquica da arte, não temos uma concepção democrática da arte. E no entanto afirmamos ter uma concepção democrática da política. Não admira pois que o dilema - boa poesia, má política - surja. E o que torna o dilema premente, é isto: é que ele nos conduz ao reconhecimento de que o nosso prazer estético "espontâneo" não é democrático. E se ele não é democrático, em que medida são verdadeiramente democráticos os nossos valores políticos?
Como é possível ter uma perspectiva "política" democrática e um sentido estético não-democrático? A teoria política liga-se indubitavelmente à razão, à lei e à prática. Ela é, enquanto teoria, essencialmente racionalista, e é evidente que nós somos capazes de racionalizar a nossa posição como uma posição política democrática. É mais fácil que fazer o mesmo em relação ao prazer. Mas sem uma crítica da política do nosso prazer a nossa posição política em geral não será firme: pode acontecer-nos sermos apanhados a fruir a poesia de um fascista.
Apresentam-se duas alternativas: continuar agonizando sobre o nosso incipiente fascismo estético; ou então arcar com a dura tarefa de uma análise do prazer. E, em última análise, é aqui que Pound nos pode ser útil. Uma vez que é tão agradável a sua poesia, dá-nos a oportunidade de encetarmos uma crítica do prazer poético de uma forma exemplar, pois, de um ponto de vista histórico, Pound pode ser visto como o exemplo da "melhor" poesia e da "pior" política da nossa era.
Uma tal crítica do prazer nada tem a ver com padrões de "gosto", os quais fazem parte da ideologia que se quer analisar. Nem, acrescente-se, terá muito que ver com a actual especialização em "pupolarismo". Ouvir os grupos folk, em vez de Wagner, não dará resultado. Na verdade, a crítica do prazer na "arte de nível" é apenas parte de um projecto que se realiza através de uma crítica da "cultura popular". Dentro do nosso modelo, a "arte" não é gosto; é sobretudo os meios da produção de significado. E a "política" será então as relações sociais da produção de significado. A nossa crítica estética - a nossa economia política do prazer - liga-se então à análise dos meios de produção de significado; os seus auxiliares são a linguística e a psicanálise e ainda a educação e a economia: como, por exemplo, na noção de Stephen Heath de "práticas específicas de significação", ou nos "meios de produção de efeitos literários" de Pierre Macherey, ou na noção poundiana de técnica. Ao analisarmos os meios de produção de efeitos literários de Pound, podemos prestar justiça ao prazer que confessamos ter tido, ao mesmo tempo que estabelecemos as bases da nossa crítica. Deste modo apresentamos uma crítica da "arte em nome da arte" que é uma análise política: uma análise da política do prazer.
Nisto não há que tomar partido por Pound, pelo governo dos E.U.A., pelos seus defensores ou pelos seus detractores. Não se trata de atacar nenhum deles. Enquanto se propõe a si mesma como análise do nosso prazer, ela é, se algo é, um ataque a nós mesmos: à nossa ficção do prazer espontâneo, à nossa sedução pela estética.
O fenómeno de Pound estabelece uma antítese radical entre os termos da política e os da arte, a qual tem de ser resolvida por uma síntese radical da arte e da política. A desgraça de Pound é conceber uma contradição entre arte e política à maneira liberal burguesa. Essa contradição pode provocar uma nova conjuntura do estético e do político: a democratização da arte - aquilo a que poderíamos chamar revolução cultural. Essa revolução deve começar por nós, numa crítica da política do nosso prazer.
Tiago Gomes ~ Viola-me Eléctrica
desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda, 1998
[1100 ex]
Avé Avô Cesariny
Um homem solitário a caminho da praia +
o bulício das intrigas de café +
uma conversa desconexa +
uma fórmula minimal repetitiva +
um sub-real encadeante +
quezílias imorais sociais -
1 poeta e pitor infeliz =
Avé Cesariny, positivo e negativo
poetoupeira lasciva
debochado dada
abissalmente graficoposto
agoniado ou bem disposto
lacónico animal subterrâneo
roupa suja para lavar em máquina eclética.
O Último Abraço
Pensara várias vezes
em ser um kamikaze
com uma bomba no peito
e dar um abraço
apertado e cordial
ao primeiro-ministro do seu país.
Ernesto Sampaio ~ Fernanda
(capa da 1ª ed)
capa de Mário Feliciano
desenho gráfico de Secretonix
Fenda, 2000
(capa da 2ª ed)
(capa da 3ª ed)
A Fernanda veio passar comigo a entrada no ano 2000. Vi-a viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Um beijo morno de despedida: «Não te esqueças de cortar as unhas à cadela e de dar o 'program' aos gatos. Ah, e também não te esqueças de me ir esperar a Santa Apolónia no domingo, à hora do costume...» E lá seguiu para o Porto no carro do João Grosso. Retrospectivamente, a recordação mais impressiva que conservo da cena é a do olhar de tristeza da Rosa, a nossa galga, vendo a dona afastar-se. Havia entre as duas uma relação fortíssima. Aliás, sempre me surpreendeu o poder da Fernanda sobre os animais: a um olhar, a um gesto, sem levantar a voz, tranquilizavam-se, obedeciam-lhe cordatos. Eu, se mandar a Rosa ir numa direcção, é garantido que vai na direcção contrária...
Falei da relação fortíssima entre uma mulher e uma cadela, e bem sei que é abusivo atribuir a um animal algo de parecido com sentimentos humanos. Pois é... Mas cada vez que levo a cadela ao cemitério, e ela aproveita para se rebolar sobre as campas (a Fernanda está debaixo de um magnífico relvado, à inglesa, de campas rasas), sempre que chega ao sítio onde a dona está enterrada, pára e assim fica de focinho entre as patas, a escarvar lentamente a terra.
Agora, dormimos todos na mesma cama: eu, a cadela, o gato (Artur) e as duas gatas (a Fina e a Nina). Numa destas noites, os quatro animais ergueram-se súbita e simultaneamente e ficaram sentados, hirtos, a seguir fixamente com o olhar um ponto, para mim invisível, que se deslocava no espaço, enquanto eu sentia o rosto batido por um sopro gelado.
Disse que vi a Fernanda viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Dois dias depois vieram anunciar-me que tinha morrido. No avião para o Porto não me saía da cabeça que se tratava de um engano, e estava ansioso por chegar, vê-la, desfazer o equívoco. Depois... a morgue, as burocracias, a entrada naquele quarto de hotel, a cigarreira e o livro abertos na mesa de cabeceira, o colar em cima da cama...
Peter Sloterdijk ~ Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária
Um diálogo com Carlos Oliveira
tradução do alemão de Cristina Peres
capa e orientação gráfica de João Bicker
Fenda, 1999
(...) Em meados dos anos 70, compreendi que o mito da revolução estava morto ou, para ser exacto, não o compreendi, cheirei-o: tinhamos entre nós um grande cadáver ideológico que começava a cheirar mal e os seus defensores também não cheiravam bem. O político seria a partir de então, e por muito tempo, um terreno sem esperança, daí até algo de novo não havia nada a esperar. Da revolução não permanecia mais que uma vaga nostalgia, o desejo de uma outra vida mais rica. Pode-se dizê-lo calmamente deste modo ingénuo porque mesmo que se dissesse de forma mais elaborada significaria o mesmo. Nós eramos obrigados a ter um outro tipo de análise, uma análise do desejo, a que chamavamos psicanálise - o que era uma designação errónea porque a psicanálise clássica diz que quem se insurge não tem razão, quando o que nós queriamos ouvir era que quem se insurge tem razão. O cadáver da revolução decompôs-se pouco a pouco até ao esqueleto e ali vieram à luz alguns radicais não redutíveis. Pôde ver-se, nesse momento, que no complexo formado pela revolução tinham existido três motivos ou figuras de base absolutamente diferentes, sendo cada uma delas autónoma e vivendo por si, mesmo se a figura ideológica na qual estavam englobados se decompôs. A primeira pedra, radical primeiro da grande revolução mítica é o Estado de direito burguês com o seu pathos formal e igualitarista. Mas, após 1945, já se tinha mais ou menos estabelecido entre nós que não estavamos exageradamente reconhecidos por tê-lo, não faziamos mais que tomá-lo como ponto de partida para exigir muito mais. Mas e este mais, o que era este mais? Para responder a esta questão é preciso conhecer ambas as outras formas de grande reviravolta. O segundo radical da revolução é a experiência individual do nascimento, a dramática ruptura da criança para fora do corpo da mãe em direcção ao mundo. Isto permanece latente e presente em cada indivíduo como cena primitiva constituindo a vanguarda das esperanças futuras de novas rupturas em direcção a condições de vida menos estreitas. A saída deste estreito canal original no qual tudo poderia já ter chegado ao fim: isto é o protótipo subjectivo da libertação...
Fiama Hasse Pais Brandão ~ Teatro - Teatro
capa de João Bicker
[livro reune as peças Poe ou o Corvo, A Rendição de Breda,
Eu vi o Epidauro (Sobre o Teatro), e Ensaio Mortal]
Fenda, 1990
1. Talvez eu queira dizer, neste espectáculo, o que Shakespeare já disse (nada menos). Que na vida há sempre uma certa margem de teatralidade, e no teatro sempre uma certa margem de vida. Algo pouco profundo. Um trompe-l'oeil, afinal. Valeria a pena dizê-lo, redizê-lo?
2. No teatro contemporâneo, quer dizer, na consciência moderna, é tão difícil fazer acontecer qualquer coisa simultaneamente com o diálogo - sendo este, exclusivamente, veículo de intensa expressividade egótica ou mundividente -, que recorri a uma espécie de trama policial revisteira, maneira visível e objectiva de fazer acontecer algo por fora.
3. E o final é óbvio. Depois do tiro, morre a atriz, fica a personagem. Mas qual personagem? Essa, a eterna, já tanto se modificou, no teatro do Ocidente, já tantas réplicas trocou com as outras... Essa transformou-se e transformar-se-á infinitamente, no Teatro, arte, como todas as outras, da transmutação.
[da introdução a Eu Vi o Epidauro (Sobre o Teatro)]
Patrícia Portela ~ Se não bigo, não digo
texto e desenhos de Patrícia Portela
desenho gráfico de Mário Feliciano
Novos Monstros, 5
Fenda, 1999
[400 ex]
Uma vez conheci o homem mais só do mundo.
Chamava-se Adão. Tinha uma maçã e uma solidão, mas nenhuma delas parecia ser grande companhia.
Não tinha pecados, nem jardim, nem vontade de comer. Para falar a verdade, não tinha mesmo nada para fazer e por isso se aventurou a uma grande jornada, onde conheceu muitos homens e mulheres, todos com umbigo. Foi assim que descobriu que não era real.
A solidão de Adão tinha directamente a ver com um buraco na barriga que lhe dizia que tinha sido cozinhado e não parido.
Decidido a tornar-se real, Adão procura uma loja de penhores.
- Boa tarde, eu gostaria de comprar um umbigo para disfarçar o meu aspecto pouco real!
O vendedor diz que só tem um. 75 anos mas em muito bom estado. Pede 2000 contos. Adão só tem uma maçã. O vendedor não faz negócio.
Adão pensa e tem uma ideia.
- Dou-lhe a minha costela!
Mmmmmm... o mercador tem uma churrascada logo à noite... Aceita.
Adão está contente e o traficante também.
Ambos celebram toda a noite e passam as 10h, as 11h, e à meia-noite... Trrrrrrrrrrriiiiiiimmmmmm, quando todas as abóboras se transformam em contos de fadas, a costela transforma-se em Eva.
Alface ~ A prima fica por cima
ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker|FBA
Fenda das raparigas, 11
Fenda, 2001
[1100 ex]
Seria talvez de bom tempo 1 explicação. Como quase sempre.
Ala explicou à família, naquele seu invertido jeito aristocrático, que vinha passar uns tempos com eles por especial deferência pela avó Rosa (Cf. Avó não pise...).
A saudosa velhota vendera-lhe a teoria que 1 presença feminina iluminaria aquelas criaturas. A serigaita da neta faria o serviço a contento, achava a velha.
Para a jovem Ala foi mudança mesmo a calhar pois os pais acabavam de expulsá-la definitivamente de casa. Sem apelo nem agravo. Rua! Vá lá saber-se porquê.
Vitório Branco concordou que aquele seu irmão (cuja existência havia esquecido) exibia maus fígados, mas daí a correr com uma filha de tenra idade vai uma certa distância. Ou não?
Os gémeos condoeram-se com a infelicidade da prima e apenas Nino se manteve insensível às desgraças que ela deu de desfiar: mendiga por conta de um cartel de pedintes cariocas, menina-bala num circo ambulante russo, major do exército infantil tailandês e por aí fora. Tretas à dúzia que a família Branco engolia embasbacada.
Pobre priminha! ecoaram gémeos & pai, enquanto Nino se levantava. Vou dormir. E lá foi.
Vexada pelo desinteresse do gordo, a bela Ala não pôde impedir-se de ficar logo apaixonada por ele, provocando na vivenda 1 fulminante ataque de ciúmes que até fez cair a pintura toda do tecto.
Alface ~ Avó não pise o cocó
ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker|FBA
Fenda das raparigas, 10
Fenda, 2000
[2000 ex]
Enquanto isso, Nino estava fechado no seu quartito a escrever uma carta d'amor.
Não há mal (a sério que não) fecharmo-nos a sete chaves para depositar as nossas vidas numa folha de papel, embora se conheça quem prefira burilá-las em público para que o bafo da multidão aqueça as palavras esbracejantes.
Estava longe de ser a primeira carta d'amor que o rapazote encetava. Precocemente afectivo e dotado de temperamento ao qual nem repugna chamar ultra-romântico, o miúdo não consentia que os dias passassem sem lhe dar pró sentimento.
Mil folhas havia enchido só no último mês, em sua caligrafia aplicada mas incandescente, e as felizes destinatárias da prosa ruborizavam-se ainda o carteiro vinha a virar a esquina, na expectativa jamais defraudada do adjectivo galante, do substantivo certeiro, do bláblá profundo e hipnótico daquele enigmático correspondente.
A quem sairia o fedelho em tão ímpar quanto enciclopédico (digamos CD-Rómico) conhecimento da insondável natureza feminina?
Vá lá um mortal saber! E ademais, não sabemos nós já (Cf. Um Pai Porreiro...) que Nino saíra realmente filho de pais incógnitos, abandonado que fora neste nosso mundo-cano dentro de um recipiente sanitário a que vulgarmente chamamos caixote de lixo?
Alface ~ Filhos assim dão cabo de mim
ilustração de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker
col. fenda das raparigas, 7
Fenda, 1999
[2000 ex]
Os Branco tinham de antemão alugado as duas únicas suîtes, a Suîte Esmeralda e a Suîte Topázio. Por três meses. Pagando tudo adiantado. Uma fortuna, mas pronto.
Lá chegados, baixaram gelosias, desligaram telefones, faxes, TVs, CDs, computadores, slot-machines, os tanques de hidromassagem e colchões eléctricos, desenroscaram as lâmpadas, neutralizaram ares condicionados, aquecedores e arrefecedores, espetaram cá fora uns estanques letreiros DO NOT DISTURB e aferrolharam-se nas camitas.
Ansiando alguma paz, respeito, etc. Pode ser? Please?
Deixem que avise desde já:
até os melhores hoteis, com seus panoramas de mar quietinho, discretos, seus pinheiros convencidos e jacarandás, com campos de ténis insonorizados e campos de golfe domesticados, de lojas vorazes e salões racés e clientes atentos e abrigados, até os melhores pardeeiros hoteleiros têm pessoal.
Que ronca, toca, bate e arranha às portas, que deseja e pretende e quer entrar e limpar e servir.
Alface ~ Uma mãe porreira é prá vida inteira
ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker
Fenda das raparigas, 3
1ªed, Fenda, 1998
1ªed, Fenda, 1999
1ªed, Fenda , 2001
[1000 ex]
A vida corria-lhes sem nada de especial a assinalar, os gémeos governando a casa e o pai mudando pendularmente de emprego. É sabido que tinha grande dificuldade em aquecer qualquer lugar que aparecesse. Não por inadaptação, indolência ou arestas de carácter, mas por ser incapaz de controlar a respectiva estatura. Dando azo (argumentavam os patrões) à risota desenfreada dos colegas. E a produtividade ressentia-se, diziam-lhe (com uma palmadinha nas costas).
O problema só normalizou, mais ou menos, quando o sr. Branco encontrou aquele que viria a ser o seu filho mais novo, Nino. Por mero acaso, num caixote de lixo. O pimpolho ignorava como fora parar ao lixo e também se lhe tinham varrido da memória as noções mínimas de vocabulário. Talvez não fosse, tecnicamente, mudo. Mas lá que não dava uma para a caixa, isso é que não dava.
Só bastante mais tarde, quando Nino começou a mostrar as suas habilidades (transformar-se em todo e qualquer tipo de objecto esférico) é que os irmãos lhe deram o devido valor e ele se pôs a falar.
O pai, pelo contrário, engraçou com o gordinho desde que o viu e ficaram pela vida fora os melhores amigos do mundo. Partilhando, nomeadamente, palpitantes aventuras em busca do sustento para o agregado familiar.
Foi ainda por essa ocasião que deram em mudar de terra em terra, adoptando como programa de acção o lema "parar é morrer".
Alface ~ Um pai porreiro ganha muito dinheiro
ilustrações de Pedro Proença
design de João Bicker
Fenda das raparigas, 2
1ª ed, Fenda 1997
2ª ed, Fenda 1998
3ª ed, Fenda 2001
[1000 ex]
As incursões em busca de fundos só ocorriam, recorde-se, quando o Sr. Branco era despedido e havia que fazer pela vida. Talvez esta circunstância justifique algum prazer punitivo com que tais acções eram encaradas pelo agregado familiar.
Entende-se tal sentimento e perdoa-se, dado que a vida de viúvo não é um mar de rosas.
E tanto assim é, que, no regresso ao lar, se tornavam inevitáveis os abraços de regozijo aos heróis carregados de notas.
Como homem habituado aos revezes da fortuna, o Sr. Branco comprava umas prendas para os vizinhos, abastecia a despensa e o frigorífico, dava uns doces ou brinquedos às crianças e, cheio de esperanças e ilusões, atirava-se à rua novamente atrás de emprego condigno.
Nestes tempos difíceis nem sempre a tarefa era coroada de êxito, mas ele não desistia. Sinceramente acreditava no valor duma educação que preza o suor do rosto como se de sal para o pão se tratasse. Podia passar meses nisso mas não desistia e encaixava recusas com trejeito compreensivo que constituía a sua imagem de marca.
Os miúdos não se ralavam, era a maneira de o pai andar ocupado. Restava-lhes a escola e a lida da casa com fraterno espírito de entre-ajuda, fruindo a rotina como só os verdadeiros aventureiros se atrevem.
Para Nino e para o pai aquele período de tréguas traduzia-se numa benção retemperadora das emoções que provocavam em outras terras e pessoas. Nunca, como em momentos que tais, a tranquila vida da família lhes sabia tão bem. O oásis durava até ao dia em que um felicíssimo Sr. Branco lhes aparecia com novo emprego. Fosse num armazém, nas obras, como estivador de porto, como estafeta, fosse como escriturário ou servente de limpeza, a alegria do pai era sempre genuína e só comparável ao cepticismo dos rapazes, que de antemão conheciam o final da história.
Apesar de previsível, a vida deles admitia excepções. Em rigor, 3 excepções. Todas 3 com o mesmo nome: férias.
António Pocinho ~ Os Mistérios de Casimiro
desenho gráfico de João Bicker
Fenda 2002
O Caminho Marítimo Para as Raparigas
(...)
Há algum tempo que não tenho nenhuma namorada. Não sei se é por causa dos meus ténis não serem de marca ou se é por às vezes me pôr a tirar macacos do nariz. A minha irmã contou-me que as miúdas não gostam de miúdos fedorentos, e eu confesso que às vezes não me apetece tomar banho.
Podia haver uma disciplina na escola para os rapazes aprenderem a arranjar namoradas. Não se davam negativas e havia aulas teóricas só para rapazes, porque as raparigas não precisam. A minha irmã, que é mais velha do que eu, arranja sempre o namorado que quer. Eu acho que vou passar a fazer como o namorado da minha irmã e esperar por uma miúda que saiba aquilo que quer.
Ultimamente, quando tento arranjar uma namorada, ou elas já têm alguém, ou acham que eu sou muito novo. O que acontece é que as miúdas me acham muita piada por calçar peúgas de cores diferentes e por estar sempre a fazer perguntas malucas nas aulas de história. Mas depois, quando as convido para sair à noite ou ir ao cinema , dizem que vão à natação ou que têm um jantar em casa da avó. É claro que não posso ir jantar a casa das suas avós, porque não gosto de pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, mas passei a frequentar a piscina. Às vezes dou um mergulho e apareço-lhes de surpresa à tona de água, o que acaba por ser contraproducente, que é uma palavra que aprendi ontem na aula de educação visual.. Ficam assustadas e chamam-me "estúpido", um nome que as raparigas costumam chamar aos rapazes.
António Pocinho ~ Quanto custa criar uma sardinha
ilustrações de Pedro Proença
capa de João Bicker
Fenda das raparigas, 9
Fenda 1999
[1200 ex]
Mal sabiam do que se tinha passado, os peixes todos iam acorrendo a casa do Tamboril e da Cachucha, manifestando a sua solidariedade e oferecendo a sua ajuda para o que desse e viesse. O primeiro a aparecer foi o Peixe-Aranha. Como todos sabem, o Peixe-Aranha (aquele peixe em que, às vezes, os humanos se picam, na praia) não é comestível e, portanto, não tem qualquer preço no mercado. Por causa disso, o Tamboril tinha-lhe um grande desprezo, maior ainda do que aos peixes mais baratos, como o Carapau. O facto de o Peixe-Aranha ter sido o primeiro a aparecer deixou o Tamboril muito comovido. Abraçou-se logo a ele e até chorou. As lágrimas dos peixes não são líquidas, são gasosas. São pequenas bolhas de ar que se soltam dos olhos.
- Ó meu amigo, e eu que não lhe dava valor nenhum. De facto, o nosso preço não é aquele que nos dão no mercado. É o nosso carácter. E você demonstrou hoje que devia valer pelo menos 9 995$00 o quilo. Você é o peie mais caro que encontrei até hoje.
- O que lá vai, lá vai. O que é preciso é trazer de volta as suas sardinhas.
Logo a seguir, chegou o Carapau e então aí é que o Tamboril já não sabia o que é que havia de fazer com tanta emoção. Não parava de se desculpar:
- E eu que não vos tinha em bom preço. Vocês hoje estão a dar-me uma grande lição. Isto é uma autêntica revolução nos preços. Vejam lá se o Linguado, um peixe de 3 865$00 o quilo, aparece por aí! Não aparece...
Valia mais que o Tamboril estivesse calado porque o Linguado apareceu mesmo. E não só o Linguado... o Salmonete, a Solha, o Chicharro, a malta do Clube dos Cabeçudos, o Polvo, a Moreia, o Choco, a Faneca e o Faneco, a Lula, uma delegação da Academia das Ciências que não parava de dizer disparates, enfim, já não havia lugar para sentar tanta gente. Não fosse estarem todos ali reunidos por uma infelicidade, aquilo até parecia uma festa. E era de facto uma festa que todos esperavam quando as sardinhas voltassem.
João Rosas ~ Qualquer pessoa dá um homicida qualquer
ilustrações de Pedro Proença
capa de João Bicker
1ª ed, Fenda 1996
2ª ed, Fenda 1997
3ª ed, Fenda 1997
[2000 ex]
Tenho uma má notícia: adormeci a meio da festa. Quando nós chegámos, os rapazes ficaram todos lixados, inveja. Mas as gajas, não; tiveram uma reação que eu apreciei bastante; disseram logo: - Olha o Sandro! Olha o Sandro! - falavam baixo, mas eu sou como o K.I.T.T., o que quero ouvir, ouço. Uns minutos depois, o Ivar, cheio de ciúme, veio contar-me que elas tinham dito que eu era um palhaço esfomeado. Claro que não acreditei. O momento alto da noite passou-se antes de eu adormecer. Tudo aconteceu quando eu pedi para porem um disco do meu pai. Não sei porquê, mas recusaram. Como fiquei frustrado, fui comer. Dirigi-me com pés de lã à cozinha. Abri o frigorífico, e o paraíso da comida deparou-se à minha frente (ouvi esta frase num filme). Foi então que o mais belo ser humano à face da Terra (outra dos filmes), a Luísa, apareceu. O cabelo esvoaçava, as narinas abriam-se e fechavam-se; chamam-lhe BNT (bimba de nariz torto), mas ela não é bimba, e o nariz é a parte mais atraente do seu corpo. - Sai do frigorífico, meu grand'animal. És um palhaço nojento. Foi o meu record pessoal, em termos de manter uma conversa com a gata, 10 segundos. Foi um espectáculo. Mal cheguei a casa, fui ao forno, porque a minha mãe me tinha guardado um bocado de perna de borrego. Ela é a melhor mãe do mundo. O Porto joga hoje com o Leça (recém-chegado à primeira divisão). Vou começar a tomar banho duas vezes por semana, pois o meu pai disse que eu já estava a ficar um homenzinho e começava a cheirar mal. A partir de amanhã, vou fazer sempre uns exercícios antes de me deitar: 10 abdominais e 10 flexões.
Vi o Tenho Dois Amores com o Marco Paulo enquanto comia uma bolachas de chocolate que estavam escondidas no armário.
Patrícia Portela ~ Operação Cardume Rosa
texto e ilustrações de Patrícia Portela
editado para o Teatro O Resto
desenho gráfico de João Bicker
Fenda 1998
Nossa Senhora do Cagaço - a própria, gentilmente cedida para uma série de "aparições"
Boa noite, chamo-me Maria, muito prazer.
Hoje deixei-me dormir, perdi o comboio para a procissão e achei que era um bom dia para me confessar.
Fumo, fumo sim senhor e travo, fumo bem.
Nunca fiz jejum na Páscoa, adoro enchidos e bebo licorzinhos; ando descalça mas não me ajoelho assim com tanta frequência, praguejo, praguejo sim senhor, adormeço na hora do terço, vou a Fátima de autocarro, nunca a pé, não conheço Santiago de Compostela, adoro vermelho, adoro toucinho do céu e sou uma voyer... a minha alcunha é Nossa Sra. do Cagaço, porque há muito que vivo cheia de medo que descubram a verdade.
Hoje queimei o almoço, perdi as chaves de casa no metro e achei que era um bom dia para me queixar.
2000 anos, 2000 anos...
Faz hoje 2000 anos que tive um caso com Gepetto, o carpinteiro. Dei à luz um boneco de madeira sem nariz.
Ai Gepetto, Gepetto, furaste-me o coração pelas costas e desde então só amo com corrente de ar... Fizeste-me mal Gepetto e por tua causa passei a vida a mentir... desapareceste-me assim, sem mais... Dizer ao meu filho este tempo todo que o pai era uma pomba...
(suspira) 2000 anos, 2000 anos... quanto tempo dura ausência...
Por tua causa chamaram-me de tudo... até de mala...
Foste-te embora sem adeus e deixaste-me virgem de 7 meses na aldeia.
Fui um sucesso... gravuras, baixos-relevos, medalhinhas, posters, postais, figurinhas de barro e de madeira, até pratos... Tanta história se fez à minha volta...
Klaus Wagenbach ~ A Praga de Franz Kafka
"um livro de leitura e viagem"
tradução de Lumir Nahodil
capa de João Bicker/FBA
Fenda, 2001
O casamento e a fundação do negócio dos pais coincidiram no tempo (1882) e no local: na mesma casa do lado norte da Praça da Cidade Velha onde foram celebradas as bodas (Hotel Goldhammer), Hermann Kafka fundou o seu comércio de galantaria, de início em regime de venda a retalho e como 'loja de rua'. Dessa casa só chegou até nós um quadro (v.p.74). Logo em 1887 a loja mudou-se para um local da vizinhança igualmente vantajoso, a casa dos Reis Magos, onde se manteve até 1906. Era portanto ali que o filho podia assistir às saídas do pai, muito antes de a famíla também viver nessa casa:
A loja. Em princípio, ela deveria ter-me dado alegria, especialmente na minha infância, enquanto foi um negócio de rua. Era tão viva, iluminada à noite, viam-se e ouviam-se tantas coisas, podia-se ajudar com aplicação nisto e naquilo, mas sobretudo admirar-te pelos teus magníficos talentos comerciais... No entanto ouvia-te gritar, ralhar e bramir de tal modo que, segundo a minha opinião daquele tempo, não havia no mundo inteiro nada de semelhante. E não te limitavas a ralhar, mostravas ainda outras formas de tirania. Quando, por exemplo, varrias do balcão, com um gesto brusco, mercadorias que não querias que se confundissem com outras... Ou aquela frase que não te cansavas de repetir, relativamente a um caixeiro doente dos pulmões: 'Que estique o pernil, esse cão doente'. Dizias que os teus empregados eram os teus 'inimigos pagos', e eram isso mesmo, mas antes ainda de se o terem tornado, tu parecias ser inimigo deles, o 'inimigo pagante'.
J. -B. Pontalis ~ Entre o sonho e a dor
tradução de Miguel Serras Pereira
capa de João Bicker/FBA
Fenda, 2001
Freud, numa das primeiras definições que deu do recalcamento, achou possível dizer dele que era uma «falha de tradução». Que diremos, assim, da própria tradução necessariamente em falha, a não ser que se arrisca sempre a instalar um acréscimo de recalcamento? Pior ainda: um duplo recalcamento, o da língua materna do autor e, igualmente, da do tradutor.
Todo o tradutor está consciente do risco, ou devia estar.Oscila sempre entre um «traduzir demais», marcado pela preocupação da legibilidade e do correctamente dito, e um «traduzir de menos», colocado sob o signo da literalidade, da fidelidade absoluta ao texto original. No primeiro caso, entende submeter-se apenas às exigências da sua própria língua, ou até do seu próprio estilo; no segundo, quer obedecer apenas à língua e ao estilo do autor. Transpor ou decalcar? De facto, seja qual for a opção assumida, o tradutor é o agente de um dito de outra maneira: o próprio copista, que pretende apagar a sua intervenção, deforma. Afinal de contas, porque seria o tradutor o único a escapar às astúcias do inconsciente? Mas é difícil admitirmos que a operação de traduzir se dê sem perda, ou seja, castração. Para consentirmos na perda, precisamos de prever que dela algum ganho possa resultar.
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