colecção Fenda Luminosa 12
colecção dirigida por Vasco Santos
capa de João Bicker
Fenda 1999
[1100 exemplares]
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Essa Dona Ivone era feia, confessemos. Feia que nem cornos. Tão feia que até os postes de iluminação das ruas mais escuras (as únicas onde, colada às paredes e a horas mortas, se atrevia a passear) tinham tendência a desviar-se dela. Daí que a Câmara se visse forçada a substitui-los por postes mais altos e modernos. Uma medida, ditada embora por cautelas autárquicas legítimas, que ficaria para sempre associada à posterior descaracterização estética do burgo. E a maldade humana é tanta que os novos candeeiros passaram a designar-se, mesmo no patuá oficial, por ivones. Não há direito.
Ivone, a ajudante, era temida, provavelmente pelo cargo desempenhado (o mundo é dos ajudantes, decretaria o meu pai), mas sobretudo devido à carantonha, tipo canhão sem recuo nem emenda. As mães mais cruéis invocavam-na para forçar os catraios a engolir a sopa. Mas ai da mãe que recorresse aos préstimos aterrorizadores de Ivone para pôr os putos na cama: ele era gritos de meia noite, pesadelos impróprios de uma cidadezinha adormecida como a nossa. Serões de província. O melhor breu. Casa do eu.
Constava que o meu avô fora o grande amor da vida de Ivone, paixão tanto mais desesperada quanto nunca, mas é que nunca, ele pusera os pés no cartório. Não sei o que aconteceria, se lá fosse.
Nós achávamo-la um castigo divino, embora seja dito em nosso abono que éramos pirralhos ranhosos e ignorantes.